Capítulo X - Mundos Paralelos: Sombras de Luz
Grande depressão. Não, não me refiro à crise de 1929, me refiro a estar num anel de metal no pescoço de meu rival mais asqueroso que acabara de se tornar um prepotente deus (Arquiteto do Universo é o nome formal) e ainda ter que assisti de camarote a demonstração de sua arrogância e prepotência. Ah, e não se esqueça de que tinha que participar da melosidade entre ele e Cassandra.
Cassandra… ela que recomeçou tudo
isso quando resolveu trazer Mazda a vida quando me tocou para ter seus poderes
de volta e ajudar Constelion que até hoje não viu cara… ou melhor, não viu sua
cara nova. Apesar disso, nunca consegui ter raiva dela. Achava ela uma vítima
da lábia de Mazda e de seus sentimentos ingênuos.
Num dia, depois de um sexo digno de
novela das seis, Cassandra acordou no meio da madrugada e fez algo inesperado.
Tá, qualquer coisa diante daquela monotonia era inesperado, mas aquilo
realmente me surpreendeu. Ela retirou o anel comigo dentro do pescoço do
encosto sem que este percebesse e colocou o objeto em cima de uma carta vazia.
Umas palavrinhas aqui e uns gestos lá, fui parar na carta. É. Pelo menos tinha
meu corpo de volta. Estático, mas tinha.
Sem perder tempo ela me jogou num
espelho que tinha na sala de trabalho dela. Mais palavrinhas e gestos e
tcharam! Ói eu de volta!
Não, na verdade onde eu estava, não
tinha Cassandra. Ela estava no espelho.
Não de novo! Eu estava no
espelho!
− Oi. − disse ela num misto de
satisfação e consternação.
− Onde eu estou? − pergunta de
efeito.
− Bem… tecnicamente você está numa
realidade alternativa. Sua alma está. É meio complicado. Neste mundo sua alma
está nesse espelho, mas aí, ela é livre. Tem corpo e tudo mais.
− Resumindo: você quer que eu viva
num mundo que é um paliativo de vida. Vou encontrar outros reflexos aqui
também? Verei pessoas se arrumando diante do espelho e aparecerei como uma
espécie espírito de filme de terror?
− Isso é provisório. Até eu conseguir
um corpo pra você.
− Eu quero o meu corpo.
− Admita, Dan, você não irá mais
conseguir aquele corpo. Mazda fará de tudo pra evitar que você sequer encoste
nele.
− Claro, ele namora com uma cigana
que vai sempre proteger suas costas.
− Maz está, no que os rpgistas
chamariam de nível épico.
− Eu sei. Posso ver tudo o que ele
faz. − isso deixou ela meio inibida.
− Olha, eu sei que sou a causa de sua
desgraça, mas farei o possível pra te dá um corpo, igual ao seu. − ela se
aproximou do espelho e tocou na superfície. − Você me perdoa? Por tudo o que eu
lhe fiz?
− Não. Até porque se fossemos
procurar culpados, começaríamos com Ph que rachou minha mente, ou mesmo eu
que não fiz nada a respeito. Não é a primeira vez que Mazda toma conta do meu
corpo e achei que depois que o mantive trancado novamente, ele nunca mais iria
sair. Não segui à risca o ditado que diz para matar nossos demônios interiores.
− Ele não é mau. Acredite em mim.
− Acho você suspeita pra falar.
− Você também.
Nos olhamos por um tempo. Nunca parei
pra pensar nisso, mas ela de fato fazia meu estilo: ruiva, cabelos cacheados e
cheios, olhos prateados e sardas pelo rosto. Tinha um tom angelical e ao mesmo
tempo travesso. Rosto de menina, mas expressão forte de mulher. Era tudo o que
eu em minha adolescência almejava em uma garota e o fato de Mazda ter
conseguido tudo isso, só me fazia odiá-lo ainda mais.
− Dê uma chance a ele. − disse ela
quebrando o silêncio.
− Ele me deu alguma?
− Ele poderia ter te matado há
qualquer momento. Você sabe disso.
− Preferia mesmo estar morto a ser um
acessório da vestimenta dele.
− Não vou permitir que se matem.
Vocês são faces de uma mesma moeda.
− Que bonitinho. Em que livro de
autoajuda você leu isso? − ela ficou calada. − Me desculpe. A única coisa que
eu quero agora é sair daqui. Penso sobre ele quando estiver aí fora.
− Eu farei um corpo pra você. Um
clone. − não pude deixar de rir. Aquilo seria mesmo irônico. − Tem problema pra
você?
− Não. Melhor que estar dentro de uma
moldura. − falei tocando o espelho do meu lado. − Mas como irá fazer isso? Por
acaso tem uma laboratório subterrâneo?
− Dizem que o homem foi feito do
barro, então uma argilazinha aqui, umas magiquinhas acolá… em dois dias terá um
corpo novinho em folha.
− Terei poderes?
− O frete já é grátis e você ainda
quer brinde? − brincou.
Eu sorri sem jeito e olhei a volta. A
sala era idêntica a dela.
− E o que faço durante esses dois
dias?
− Bem, esse mundo é como o nosso. −
disse indo pra sua mesa. − A diferença é que não tem mais ninguém aí. E quanto
aos espelhos, você só verá sombras de luz. Reflexos. − disse em tom
explicativo.
− Sei. Então, se não se importa,
estarei curtindo minha solidão por aí.
− Tá… − disse ela não gostando muito
da ideia. − Só não vá muito longe e nem demore. Quando devolver o anel, vou
estar o tempo todo aqui, se precisar.
− O.k. Pode deixar. Ah, e obrigado −
falei antes de sair. − É muito corajosa pra desafiar o novo deus Mazda bem
debaixo do nariz dele.
− Ele não me machucaria.
− Eu não apostaria nisso. Mas posso
te proteger dele. − ela sorriu. Droga! Pareci um convencido me atirando pra
cima da primeira que apareceu. − Ou talvez ele não te faça nada mesmo. − falei rápido,
me retirando da sala.
Ela fazia meu estilo sim e, apesar de
estar com o cara errado, não tinha intenções nenhuma com ela.
Esquecendo um pouco dessa história
fui andar por aí. Lá também era noite e, apesar das ruas desertas, eu sabia que
não teria ladrão algum pra me assaltar, nem nenhum drogado pra me extorqui um
meio de cheirar mais. As ruas eram minhas, aliás aquelas vielas escuras me
fizeram lembrar da primeira vez que vi Mazda com seu corpo esquelético. Parecia
mais um pedaço de estrela-do-mar que acabara de formar os outros braços. Eu me
sentia assim também.
Minha alma fora dividida mais vezes
do que eu poderia contar. Perdi pessoas que amava e venci batalhas das quais
custaram muitas vidas. Vidas que, pelo que entendi na conversa com o bruxo-peixe
naquela prisão marciana, estão atreladas a mim. Vidas que sempre manterei vivas
em minha mente. Que me acompanharão aonde eu for. Que abrirão asas e planarão até o poste mais perto, quebrarão a lâmpada, gritarão para o céu sem estrelas e
me perseguirão pelas ruas desertas até eu pular num latão de lixo, me proteger
entre os sacos e lhe enfiar uma garrafa quebrada de cerveja em um de seus olhos
e voltar desembestado para a casa-espelho de Cassandra.
− Você está bem?
− Achei que esse mundo… estivesse deserto.
− disse segurando os joelhos de frente para o espelho.
− E está.
− A não ser que eu seja
esquizofrênico, acabei de ser atacado por uma besta de asas e dentes do tamanho
de meu antebraço.
− Do seu antebraço? − dica: nunca
minta pra uma vidente. Nem omita, nem aumente.
− Tá. Talvez menor. O fato é que
quase fui devorado lá fora.
− Estranho. Achei que aí fosse uma
dimensão oca.
− Quem é esse? É o dono do corpo de
seu namorado? − até Helena sabia de quem era aquele corpo.
− Um dos. Helena, me lembre de uma coisa:
a dimensão no espelho é uma dimensão oca?
− Uma dimensão oca? Desde quando?
− Ué, quem habitaria um espelho?
− Alguém que diz quem é mais bonita
dos contos de fadas não seria uma dica?
− Não acho que alguém perguntaria se
tem alguém mais bonito pra coisa que eu acabei de enfrentar.
− São narcisos. − informou Helena.
− Claro! Como pude me esquecer disso?
− Narcisos? Tipo flores?
− Tipo O Narciso. − falou Cassandra.
− O cara da mitologia grega que adorava o próprio corpo.
− Mas ele não morreu num lago?
− Essas criaturas não tem nada a ver
com o mito. São apenas chamadas assim, porque vivem em espelhos que não são
dimensões ocas − falou olhando pra sua protegida. − se alimentando de reflexos.
− Reflexos?
− É. Por isso que algumas pessoas não
se veem como realmente são e sim suas imagens distorcidas. Como eu me esqueci
disso? − falou indo até a mesa.
− Bem, você não faz muito o tipo
vaidosa, né?
− Não conheço ninguém pra me
inspirar.
− Você é tão alérgica a inspirações
como a abelhas.
− De seres de asas que azucrinam os
outros, você entende, né?
− Ei, meninas! − aposto que aquelas
briguinhas de irmãs eram comuns, mas meu problema era sério. − Não sei se te
contaram, mas eu não sou só um reflexo e estou preso aqui dentro. O que
significa que não vou ficar distorcido no espelho e sim destroçado.
− Bem, eles podem não querer comer
você, já que não faz parte do hábito alimentar deles.
− Não vou esperar eles provarem um
pedaço de mim pra decidirem se vão incluir a nova iguaria ao cardápio ou não.
− Eu sei, eu sei. – falou Cassandra
revirando vários objetos na mesa. − Tô procurando alguma coisa aqui para que
possa se proteger.
− Você teria que achar uma armadura,
pois um ferimento dessas criaturas pode ser fatal.
− Ah, isso me deixa muito mais tranquilo.
Cassandra…
− Não me aprece, não me aprece. −
cantarolou.
− Eles te seguiram até aqui?
− Não.
− Você matou o que te atacou?
− Com murro?
− Dan não tem poderes.
− O quê? Que tipo de ser humano é
você?
− Bem, não tem nada aqui. Nada que
possa te proteger. Tem que ficar aí no mais absoluto silêncio e escuridão.
− A impressão que tive é que eles
enxergam bem no escuro.
− Enxergam, mas a luz vai chamar a
atenção do que te chamou e de outros. Quando amanhecer, fique no lugar mais
claro possível, isso deverá te camuflar.
− Vou ficar nesse esconde-esconde
durante dois dias?
− Helena vai pensar em alguma coisa
pra te proteger até lá.
− Se só tem tu…
− Tá. Vou pegar algumas facas e
apagar as luzes.
− E torça pra que
aquele que te atacou não tenha te seguido na surdina. − falou Helena me
deixando muito mais calmo... pra não dizer o contrário.
Fiz o que elas pediram.
Fechei a casa toda e apaguei até um vaga-lume intruso que entrara sem
autorização. Munido de facas que afiei, me escondi numa barricada improvisada
por um armário que tinha na sala de Cassandra e dormi lá. Primeira noite,
depois de muitas dentro daquele anel.
De dia, fiz o inverso:
abri todas as portas e janelas, acendi lâmpadas e velas e comecei a procurar do
meu lado, algo que pudesse me ajudar, afinal tudo que tinha lá tinha aqui. De
fato havia muitos artefatos, mas todos paliativos. Como eu sabia disso?
Estava eu abrindo uma
das gavetas da barricada improvisada quando um narciso entrou pela janela.
− Fique… quieto. −
pediu Helena.
Olhei pra trás e o bichano estava vasculhando a
área.
Não era o mesmo, pois
seu rosto estava incólume e pareceu não me reconhecer. Por sorte o sol que
entrava na janela, ainda me iluminava quando outro narciso entrou fazendo
sombra em mim. Foi automático, como seu eu tivesse gritado ou pendurado uma
melancia no pescoço. Os dois se viraram para mim.
− Use o cristal! −
gritou Helena chamando a atenção de Cassandra que fazia uma escultura numa
bacia com barro e água.
Mas já era tarde. O
segundo o narciso voou em minha direção, mas eu usei a cômoda como escudo que
acabou caindo por cima de mim. Peguei um dos cristais que caíram e transformei
em espada. O que me atacou primeiro seria o alvo primário, mas o segundo veio
pelo lado tentando me abocanhar. Enfiei em sua goela a lâmina de cristal da espada
transpassando a cabeça do bicho, mas o infame mordeu minha arma quebrando-a.
sem ter como lutar, joguei a cômoda com narciso e tudo para um lado e pulei o
outro em direção a porta. Quando tava no umbral, voltei pra dizer:
Vou estar em casa. É na
Liber…
− Eu sei, vai! − gritou Cassandra.
Sai correndo pelas ruas. Nenhuma
nuvem, o que era bom e ainda tinha as facas.
Não sei se era paranoia minha, mas me
senti observado. Preferi trancar a porta de lá de baixo e deixar as do andar
superior abertas. Por sorte, tínhamos grades o que dificultaria a entrada dos
narcisos de qualquer forma.
− Dani? Você está aí?
− Tô. Só fui pegar uma coisa. −
Lembrei que meu pai havia deixado (ou esquecido) uma peixeira de um metro de
lâmina que guardávamos na laje. − Só está um pouco enferrujada.
− Amarre isso no cabo. − ela jogou
uma espécie de pulseiras de contas. Sem questionar, amarrei a pulseira no cabo
do facão que renovou sua lâmina num piscar de olhos.
− Thanks. Mas como entrou aí?
− Como não tinha ninguém em casa,
resolvi usar uma carta na manga. Literalmente. − respondeu com um sorriso.
− Achei que Helena que viria.
− Preferi deixar ela fazendo o clone.
Chamará menos atenção e será mais rápido.
− Tomara mesmo. Não vou poder ficar
pulando de casa em casa a procura de um espelho. Não vou poder fugir deles pra
sempre. Agora são três que me conhecem e sinto que isso vai se multiplicar
exponencialmente.
− Eu sinto muito, por tudo isso.
− Não se culpe. Até porque não faz
sentido se culpar quando está namorando o cara que me botou nessa situação.
− Você mesmo disse que há muitos
culpados nessa história, inclusive você mesmo. Mazda não fez nada que você não
tentaria se tivesse chance.
− Sim, mas a diferença é que eu
sou o verdadeiro Danilo.
− Como sabe? Vocês são duas bandas
separadas que vivem pra destruir o outro, mas não pararam um segundo sequer pra
ver que o que um tem, é o que falta no outro.
− Eu estou bem sem arrogância e
prepotência.
− E ele sem teimosia e autopiedade.
− Autopiedade? E por acaso eu não sou
vítima? Por acaso minha teimosia não é a obstinação de quem quer sobreviver
nesse mundo?
− E por acaso arrogância não poderia
estar sendo confundida com autoconfiança. É prepotente saber que é superior?
Olhe pra ele. Ele está no mesmo patamar em que um deus. Como vê, tudo é ponto
de vista.
− Por que o protege tanto?
− Porque eu o amo.
− Quem você ama? A metade mais
empertigada de minha alma, ou a personalidade que lhe devolveu seus poderes?
− Você não entende, não é? Ele não
usurpou seu corpo, porque vocês são um só. Está digladiando e concorrendo
consigo mesmo. O braço esquerdo e direito podem ser diferentes em certos
aspetos, mas pertencem ao mesmo corpo.
− Xalau.
− O quê?
− Xalau! Ele era
um bruxo que teve o corpo desintegrado, quando menor, mas aí sua irmã Morgana
juntou pedaços diferentes formando um corpo pra ele.
− Como o Frankenstein?
− É. Um Frankenstein Bonito como ele
se chama.
− Quer que eu junte pedaços de
pessoas diferentes pra formar um corpo pra você?
− Você poderia usar membros mecânicos.
− Não sei se isso daria certo, e
levaria quase tanto tempo quanto o clone.
Sentei na cama de frente para o
guarda-roupa que tinha o espelho.
− Se ao menos eu tivesse com os meus
anéis.
− Se eu roubar os anéis dele, Maz vai
desconfiar. Isso!
− Isso o que? Vai roubar… as canetas
dele?
− Não. Vou fazer um anel pra você.
− Um anel? Tipo dez em um, né? – debochei.
− É. − falou sorrindo. − Já ouviu
falar em anel de ferro oco?
− Santa… de pau oco.
− Não, anel. Tipo, não tem ferro-frio
o qual é forjado sem fogo e os elfos são vulneráveis?
− Dentre outras coisas, sim.
− Pois é, existe um tipo de ferro
chamado de ferro oco, feito de mercúrio…
− Peraí, mercúrio é líquido em estado
natural.
− Aí que entra a técnica do
ferro-frio. Esfriando o mercúrio, se consegue uma liga resistente, mas de
interior oco.
− E pra que eu vou querer um anel de
dez partes ocas?
− Pra se colocar poderes nele.
− Que poderes?
− O que você imaginar!
− Assim, do nada? É só pensar que
magicamente um poder se aloja no anel?
− Não, claro que não. Pra isso
acontecer você precisa fazer um pequeno feitiço no anel.
− Eu não sou bruxo.
− Falei feitiço, não bruxaria.
Feitiço qualquer um pode fazer, sabendo o encantamento certo.
− É. Tinha me esquecido da diferença
entre bruxo e feiticeiro. − Um tem dom inato, o outro aprende os poderes.
− Nesse aspecto, Morgana pode te
ajudar.
− Ela mora…
− Eu sei onde ela mora. Sou uma
cigana, esqueceu?
− Não. − sim. − Só não demore.
− Tá.
Ela soltou um beijo e saiu.
A manhã passou e no final da tarde
ela voltou com Morgana.
− Eu conheço você?
− Sou amigo de seu irmão, Xalau.
− Ah. Ele tem tantos amigos, que às
vezes me confundo. − ela não fazia ideia de quem eu era.
− Bem − disse Cassandra depois de um
pigarro. − Queria que você me ajudasse com…
BANHH!!
O narciso caolho havia me encontrado.
Ele voou direto na grade de ferro fazendo um barulho ensurdecedor.
− O que é aquilo?! − perguntou
Morgana assustada.
− Um narciso.
− Um o que?
− O motivo pra você me ensinar esse
feitiço em tempo recorde.
− E-ele pode pa-passar da grade?
− Vamos torcer pra que não antes de
você ensina-lo o feitiço.
− Ta. É… bem. Você vai precisar de
duas velas brancas… − sai correndo pra cozinha onde encontrei as velas e o
fósforo. − Uma xícara de água de chuva.
− Uma xícara de água de chuva? O que
é isso, receita de bolo? − a resposta foi um pedaço de ferro partido que
permitiu que o narciso colocasse sua bocarra pra dentro do quarto.
− Vai logo, Danilo! − mandou
Cassandra.
− Onde eu vou encontrar chuva, num
sol desses?
− Choveu meio-dia. Talvez ainda tenha
um pouco de água na laje.
Torcendo pra que ela estivesse certa,
subi com uma xícara de vidro que minha mãe usava pra fazer bolo e uma esponja.
Com os materiais numa mão e a peixeira em outra subi até a laje verificando
minuciosamente se não haveria um narciso lá me esperando também.
All Clear. Olhei em toda parte,
estava tudo quente inclusive. Então fui a lavanderia e, por sorte havia uma
fina camada de água. Verifiquei se não era da torneira que poderia estar
pingando e, vendo que era chuva mesmo passei a esponja espremendo o que podia e
não podia.
Um pio. Um grasnado.
“Droga”
Com todo cuidado pra não desperdiçar
a já pouca água de chuva desci as escadas fechando a abertura da laje e a porta
que levava a escada.
No quarto o bicho já tinha um braço e
meio no lado de dentro.
− Vamos, se apresse!
− Agora pegue um prato fundo e encha
de sal até a borda.
− Fácil. − muito fácil. Trouxe a
tigela de sal junto por precaução.
− E agora?
− E agora um incenso de patchuli
− De quê?
− Pode ser Sândalo.
− Poderia ser canela.
As duas se olharam.
− Bem, tecnicamente esse feitiço é
pra energizar um cristal, mas acho que a alteração é válida. − disse Morgana.
− Mas neste caso tem que ser um pedaço grande e
fino de canela! − gritou, pois eu já estava na sala. Voltei com um pote inteiro
de canela e despejei na cama ao lado do prato cheio de sal.
Narciso: uma pata dianteira e uma
traseira mais o rosto dentro do quarto.
Eu: ingredientes do feitiço pronto.
− Coloque a canela em pé no meio do
prato. Agora acendas as velas dizendo: ascter
karar matusi
−
Ascter karar matusi.
− Agora com uma das velas ascenda a
ponta da canela dizendo: ascter karar-na
moitoilue.
− Ascter
karar-na moitoilue.
O bichano já estava quase todo dentro
do quarto. Eu comecei a suar.
− Agora mergulhe o anel na água da
chuva e jogue no prato passando pela canela. − Cassandra jogou o anel pelo
espelho. − Agora diga em voz alta apontando pro prato: AKAIMOLER AKAIMOE AKAI CENARA KIDELUTYO TEMU OTE TEMU OTE TEMU OTE.
− AKAIMOLER AKAIMOE AKAI CENARA KIDELUTYO TEMU OTE TEMU OTE TEMU OTE.
O anel brilhou em cor escarlate e o
sal ficou laranja como o céu no pôr-do-sol. As velas se consumiram em segundos
numa chama azulada e a canela se desintegrou em cinzas.
− Ponha. − falou Morgana.
− Espero que funcione. − Cassandra.
− Eu também. − coloquei o anel e senti a energia
pura que corria por dentro do acessório.
Olhei pro narciso que abria a grande
em dois e minha ira se inflamou. Lancei uma bola de fogo que o arremessou na
casa da frente.
Na copa ouvi o som de vidro se
quebrando e inferi que fosse outro narciso que entrou pelo grande basculante da
sala.
− Eles estão aqui. − disse.
− Pode ir pra minha casa.
− Não. É melhor que você vá pra um
lugar mais distante.
Pensei um pouco:
− Vou pra casa de Ray (Raiane).
Cassandra meditou por um segundo
antes de acenar positivamente indicando que conhecia o local.
Na porta o narciso apareceu e eu
joguei as chamas nele de novo, mas o desgraçado se protegeu com as asas e
repeliu as chamas. O bom foi que ele abriu a guarda para eu enfiar o facão no
peito dele e chuta-lo do meu caminho. Quando sai do quarto, outro narciso
entrou, mas eu fechei a porta. Na porta da varanda um deles me aguardava com a
boca pra dentro esperando abocanhar um membro meu. Me distanciei alguns passos
e então corri em sua direção. Atravessei a grade, ele e a mureta da varanda e
quando ia chegando ao chão planei e voei desviando dos fios de alta tensão.
Uma escapada, três poderes. É…
comecei bem.
Não demorei quase nada pra pousar na
casa de Ray, mas já era noite. Atravessei a porta e fui até a cozinha. Me
apoiei na mesa e olhei o anel em meu dedo. Sentia a energia pura presa em sete
divisões e outras três que estavam modificadas em energias bem distintas.
Verifiquei o espelho do banheiro.
Cassandra não havia chegado nele ainda. Ao voltar pra cozinha viu uma garota na
sala me apontando uma escopeta. Num reflexo quase inumano, abri a porta da
geladeira fazendo de escudo.
− Narciso, desgraçado! Como conseguiu
entrar? − perguntou recarregando a arma.
− Espere! Eu não sou um narciso.
− E agora eles falam… − falou
atirando na dobradiça da porta soltando-a. Quando a porta caiu, a moça já
estava com a arma apontada bem na minha cara. − Quem é você?
− Eu… Eu me chamo Dan. Fui colocado aqui, porque meu corpo foi tomado pela minha dupla personalidade. − disse. Era estranho olhar pra Mazda ou até mesmo pra Constelion, contudo nada se comparava a olhar para aquela moça.
Não sou muito descritivo, mas ela era
mediana, morena clara de olhos cor de melaço, cabelos castanho-escuro,
amarrados em rabo-de-cavalo até o meio das costas. Quando me levantei, vi que
ela era do meu tamanho, talvez levemente menor. Sua expressão séria parecia
indagativa.
− Quem é você? − perguntei.
Ela me fitou nos olhos por um tempo
antes de responder:
− Dil
Estendi a mão para ela. Ficou
relutante ao apertar, mas depois relaxou e abaixou a arma.
− Achei que não haveria mais ninguém
aqui.
− É. Ontem achei que não teria nada
vivo nessa dimensão.
− Antes fosse. − disse rindo. − O que
faz aqui? Como entrou?
− Bem, eu… atravessei a parede. −
senti que poderia confiar nela, mas preferi não entrar em detalhes.
− Uau. Enquanto eu só sei carregar
essa arma eternamente.
− Isso não é bom?
− Até a arma dá defeito. Já usei
muito ela.
− Pior se nem ela tivesse. − falei
alisando o anel involuntariamente. Ela percebeu.
Então vi que ela também usava. Cinco
anéis em uma mão ligados por fios de cobre até uma pulseira que imaginei ser
algum dispositivo.
− Improvisei uma soqueira. − disse
explicando a pergunta não dita.
− Como foi parar aqui?
− Como foi parar aqui?
Rimos. Disse o que ocorrera desde a Caneta achada ao espelho na casa de Cassandra. Não sei, por que, me sentia à
vontade em contar aquilo pra ela. Ela ouviu com atenção, preparou um suco de
pozinho pra nós dois e, quando eu acabei, ela se preparou pra dizer o porquê
dela está dentro num espelho e na casa-reflexo de minha amiga vampira.
− Minha história não é
muito bonita. Vivia numa tribo indígena na qual o filho do cacique era
apaixonado por mim. Era o que o povo da cidade chamava de casal vinte. Até o
prefeito da cidade onde eu estudava fora convidado para celebração de nosso
casamento. Mas aí…
− Mas aí…?
− Uma sereia levou ele.
Disse trabalhar em nome da Mãe das Águas que queria uma coisa dele.
− O quê?
− Nunca soube. Com a ajuda do filho
do prefeito e alguns índios percorremos pelo rio até sua fonte. Enfrentamos a
cobra d’água e chegamos até onde meu noivo era mantido. Os guerreiros da Mãe
das Águas estavam mortos. Com furos de bala.
− Quem os matou?
− A mesma pessoa que
roubou o que a Mãe das Águas queria.
− E ele não te disse o que era?
− Era um artefato muito
poderoso, ele tinha medo de que eu ou algum dos que o resgataram fossem atrás
do ladrão e tentasse pegar o objeto. Ele me contou que foi trazido por alguém
de outra dimensão e o entregou segundos antes de falecer em seus braços.
− E ele não foi atrás do ladrão?
− Não. Disse que aquilo
interrompeu nosso casamento e que não ia deixar isso acontecer de novo. Mas não
adiantou. Um príncipe, sei-lá-de-onde veio até nós, chantageou nossa tribo
dizendo que se não o entregássemos nossa aldeia seria queimada com todos
dentro. Sem opção o cacique o desafiou em um duelo: se ele ganhasse levava seu
filho, se perdesse nunca mais tocaria naquelas terras. O príncipe confiante de
que de que venceria um índio velho, perdeu vergonhosamente, então, antes de
sair mandou que me sequestrassem.
“Em seu calabouço convenci uma
andorinha a avisar a meu noivo que não viesse me buscar. Não queria que ele
fosse sequestrado por um príncipe megalomaníaco que matava índios como hobby. De fato
ele não veio o que me aliviou, mas então, o príncipe se apaixonou por mim e
decidiu me fazer de princesa. Falou que se eu não aceitasse, sua influência
chegaria ao prefeito que queimaria a floresta por ele. Claro que não acreditei
naquele absurdo, mas casar com aquele futuro déspota era melhor do que ficar
presa naquele calabouço.
“Uma vez princesa, usei minha
influência para saber o que acontecia na aldeia, saber como meu noivo estava,
quando a prima de segundo grau do príncipe voltou do norte e, ao descobri que
ele casara com uma índia, não gostou nada daquilo. Ela fez eu acreditar que o
príncipe me traía, o que não me dizia nada, embora fosse uma mentira deslavada.
Mas então soube que o filho do cacique tinha uma nova pretendente. Uma índia
linda que se desenvolvera nos anos em que estive fora.
“Aquilo sim foi uma pontada no
coração. Embora pedi eloquentemente que ele não viesse me buscar, senti remorso
e raiva por ele ter me obedecido. Era como se no fundo ele não me amasse a
ponto de se arriscar como eu me arrisquei por ele. A prima do príncipe se
aproveitou da minha fraqueza, fingiu-se ser minha amiga e, após matar o príncipe,
que se tornara rei nesse meio tempo, me convenceu a fazer um triunvirato com o
irmão dela. Eu me casaria com ele fortalecendo a aliança tripla, mas então ela
me prendeu num espelho. O espelho do príncipe.
“Acredite, isso aqui é só um
mundo-reflexo. O verdadeiro mundo dos espelhos é bem pior que isso. Confuso,
cheio de sombras e entidades desvairadas como Desejo, Inveja, Desprezo e a
líder: Vaidade. Embora ela e Inveja façam parte dos sete pecados capitais, a
Vaidade tinha muito poder ali. Acredito que ela seja a mãe dos narcisos que,
assim como ela, se alimentam dos reflexos expostos demasiadamente em frente ao
espelho. Em seu reino ela era a Deusa. E foi por causa dela que o príncipe quis
matar meu noivo. Ela lhe disse que o único homem mais belo que ele era um
índio, filho do cacique de uma tribo pequena. A odiei desde que a conheci. Tão
fútil, mandou que o Desprezo me mandasse para esse mundo.
“Tocada pelo Desprezo sentir repulsa
por mim mesma, pelo meu corpo tocado por um nobre desvairado e por um guerreiro
covarde. Evitei cada espelho que encontrei, cada superfície polida o suficiente
que pudesse me ver. Com isso evitei também os narcisos.
“Vaguei por muitos lugares. Visitei a
floresta da minha família. As árvores estavam sem folhas e dos animais só haviam
as sombras deles em dias de sol. Não eram muito amigáveis.
“Quando cheguei aqui estava melhor da
minha depressão. Resolvi entrar em um shopping. Comi bastante, tomei banho no
banheiro dos funcionários e entrei em uma loja de roupas onde vi o primeiro narciso.
Na verdade eram dois. Eles puxavam de cada lado o reflexo de uma mulher se
achava gorda e da maneira que eles puxavam seu reflexo, ela tinha razão em se
achar assim. Então eles me viram. Corri o máximo que pude, entrei na seção de
armas e o ataquei com uma pistola semiautomática. Após me vestir e encher uma
mochila de roupas e suprimentos levei algumas armas comigo. Descobri que os
desgraçados são bem resistentes e só uma arma de calibre alto funcionava.
“Me entoquei de casa em casa, até
achar essa numa fuga. Achei boa, apenas duas entradas fora a janela. Posso usar
o guarda-roupa e a estante como barricada.”
Entrei tão esbaforido que nem percebi
que os móveis estavam diferentes.
− E você? Por que veio pra cá. Aqui é
um verdadeiro labirinto de casas.
− Aqui mora uma amiga minha. Quer
dizer, do outro lado.
− Dan? − era a voz de Cassandra
vinda do espelho.
− Está tudo bem. − assegurei quando Dil já levantava a arma. − Fui até o banheiro e vi a ruiva ao lado de Ray
que parecia não ver nada.
− Está vendo ele?
− To. Você está bem?
− To sim. O anel veio bem a calhar.
− Morgana foi investigar sobre os
narcisos. Saber o que pode matá-los. − ela fez uma breve pausa. − Por enquanto
tiros de doze estão funcionando. − falou olhando pro que seria a parede do
banheiro.
− Bananinha! − chamou Gabby atrás de
Cassandra. − Como você foi parar aí?
− Bem… é uma longa história.
− A pergunta foi retórica. −
disse fechando a cara.
− É, esqueci que você sabe tudo. −
sorri.
− Na verdade eu contei tudo pra eles.
− falei Cassandra
− Eles?
− Lacerda e Tio Mai também estão aqui.
− Ah, o quarteto.
− É. Eles estão vendo uma maneira de
te tirar daí. Vocês dois. − disse depois de uma pausa. Odeio videntes
convencidas. E Gabby sabia muito bem encarnar uma.
Dil apareceu e acenou de leve.
− Seu nome não é indígena. − falou
Gabby.
− Fui criada pelo povo da cidade,
antes de meus pais morrem num acidente de carro perto da aldeia. Fui achada e
criada como índia, mas meus pais adotivos preferiram deixar o nome.
− Bem… tenho que voltar, se não Maz
vai desconfiar de eu ter ficado tanto tempo fora.
− Quem é Maz? − perguntou Ray.
− É o meu namorado.
− Prova viva de que gosto não se
discute.
− É, diria o mesmo de sua namorada…
se você tivesse uma. − golpe baixo. As minhas pretendentes não tinham sido
muito fáceis. Duas morreram e uma preferia caras mais velhos (bem mais velhos).
− Teria uma se tivesse um corpo. Tô
começando a achar que é inveja.
− Engraçado, ia dizer a mesma coisa.
− Até parece… consiga um corpo que
preste pra mim e aquele encosto pode ficar lá o quanto quiser.
− Bem lembrado. Vou ver como anda o processo
do clone com Helena. Té mais. Beijo. − ela saiu sacudindo a cabeleira vermelha.
É… em alguns aspectos tinha inveja do “Maz” mesmo.
− Bom… pelo menos você não fica aí
sozinho. − falou Gabby dando uma piscadela. − Amanhã venho te ver.
− Certo. − e o espelho ficou vazio de
novo.
− Você tem amigos que gostam mesmo de
você.
− Eles vão conseguir tirar nós dois
daqui.
Ela sorriu sem muito humor.
− Deixe eu consertar essa geladeira.
− Parece que não tem muitos
suprimentos aqui. − comentei levantando a porta da geladeira enquanto ela ia
buscar o maçarico.
− Pretendia ir no supermercado aqui
perto no final da semana, mas já que tenho companhia, melhor ir amanhã mesmo.
− Desculpe dá trabalho. − disse
enquanto concentrava as chamas na dobradiça quebrada soldando-a.
− Tudo bem. Pelo menos não fico mais
sozinha.
Quando ela voltou a geladeira estava
como nova, exceto pelos furos na frente.
− Também achei bom ter te encontrado.
Ela sorriu antes de dizer:
− Você é cheio de surpresas. − falou
vendo que o maçarico era desnecessário.
− Cassandra, a ruiva, ela com outra…
− não seria interessante dizer que havia bruxas no meio. − amiga me deram esse
anel. Posso pôr até dez poderes nele. É provisório até eu conseguir sair daqui.
− É, temos que estar preparados pra
tudo.
Conversamos por mais algumas horas
até ela ir dormir no quarto de Ray, onde o guarda-roupa ficou na frente da
janela e eu dormir no quarto ao lado.
Segunda noite no mundo-espelho. Tive
sonhos esquisitos, dos quais eu era um anel de grande poder usado por uma
entidade muito, muito poderosa. Provavelmente eram lembranças da minha breve
vida num anel de bronze.
No dia seguinte, nos preparamos para
ir ao supermercado.
− Com você aqui, não precisamos tirar
as barricadas e correr o risco de encontrar um narciso aqui dentro.
− Certo. − disse abraçando ela e
atravessando a parede.
Lá fora voamos e entramos no
supermercado.
− Onde estão suas armas? − quando ela
me mostrou adicionei mais um poder: controlar armas. As pistolas e minhas facas
flutuaram ao nosso redor. − Você pega os suprimentos e eu guio o carrinho atrás
de você.
− Certo. − com as mãos livres ela foi
singrando pelos corredores pegando tudo que precisávamos: roupa, comida, coisas
de limpeza, enfim… − Vamos acabar bem mais rápido do que se eu tivesse aqui
sozinha.
− Duas cabeças pensam mais que uma e
quatro mãos trabalham melhor que duas.
De fato levamos menos de uma hora. Eu
já estava acostumado a esse processo, mas a diferença que não havia outras
pessoas com carrinhos interditando os corredores, nem fila pra pagar.
Estávamos terminando quando ao passar
por um corredor de maquiagem vimos um narciso esquelético abocanhando um rosto
feminino que era projetado por um pequeno espelho preso à gôndola. Ele parecia
faminto o que apressou nosso passo, apesar da curiosidade devido ao estado
físico do narciso. Ele também possuía algumas marcas em volta do corpo.
Adiantamos pra pegar os últimos objetos e sair o mais depressa possível quando
na ponta do corredor que estávamos apareceu outro narciso com o mesmo corpo
esquelético e marcas parecidas com a do narciso anterior. Ele mancava
levemente, mas foi bem rápido em nossa direção quando nos viu.
Lancei uma bola de fogo na perna boa
dele fazendo-o cair e deslizar pelo corredor ficando no chão mesmo sem força
para levantar.
− Queria que todo narciso fosse
assim. – disse me amaldiçoando em seguida pelo comentário.
Na ponta oposta do nosso corredor
mais dois narcisos apareceram da mesma forma. De repente o primeiro narciso
criou foças para se levantar e abrir a boca nos encurralando.
− Já pegou tudo? – perguntei mirando
as armas para os narcisos.
− Falta só o desodorante masculino
ali ao lado daquele narciso com dentes afiados.
− Os dois… – disse cheirando debaixo
do meu braço pra saber se o comentário era apenas casual. – têm dentes afiados.
– Sem perguntar se era realmente importante aquele desodorante parti pra cima
dos dois narcisos empurrando o carrinho e usando as armas para atirar neles.
Ao contrário do que acontecia com os
outros, armas de pequeno porte surgiam efeito nessas bestas que pareciam não
comer por décadas.
O caminho tava livre, mas como
problema nunca vem só, tão pouco em números contados, outros narcisos
desnutridos vieram para nosso corredor, alguns pela entrada, outros por cima e
um chegou até a se esgueirar pelas prateleiras, mas lancei chamas em seu
focinho mandando-o de volta.
− As balas estão acabando. – me
alertou Dil.
Então fiz uma a uma as armas voarem
até ela para que fossem recarregadas, enquanto as facas voavam ferozes contra
os corpos finos dos narcisos. Apesar de serem abatidos facilmente, eles se
aglomeravam com rapidez compondo mais de vinte narcisos nos atacando e ainda
nem tínhamos chegado ao tal desodorante.
− De onde eles vieram? – perguntei
empurrando o carrinho com uma mão e lançando bolas de fogo com a outra.
− Acho que eles ficam confinados aqui
como uma espécie de prisão.
− Se for mesmo isso, temos que dá-los
algo que eles queiram mais que nossa carne: liberdade. Leve pra mim. – disse
deixando o carrinho sobre o controle de Dil que, usando sua soqueira
improvisada para disparar descargas elétricas de curto alcance para os narcisos
que chegavam muito perto, fazia o mesmo que eu.
Com as mãos livres, criei uma imensa
bola de fogo de lancei contra uma das portas que estava fechada. O estrondo
chamou a atenção dos narcisos secos e de outros empoleirados na estrutura de
ferro que nem eu nem ela havíamos reparado. Ao contrário dos que combatíamos
naquele corredor, aqueles narcisos eram maiores e bem mais corpulentos o que,
pelo número deles, seria um problema imenso. Seria, se eu não estivesse certo
quanto à liberdade dos narcisos esqueléticos.
Eles pareceram ter se esquecido de
nós e correram se amontoando uns nos outros em direção à saída. Os que estavam
empoleirados voaram desesperados tentando impedir os prisioneiros de sair.
Contudo alguns deles também vieram em nossa direção.
− Eles precisam de liberdade a mais,
Dan. – falou Dil mirando sua escopeta contra os narcisos carcereiros,
única arma que funcionava contra eles.
Atendendo ao pedido, lancei mais
bolas enormes de chamas que destroçaram mais cinco portas de ferro do supermercado.
− Venha! – chamei jogando uma bola de
fogo no narciso bem alimentado que se esgueirava por trás de Haydil para
fazê-la pagar por aquela rebelião e, com a outra mão puxei o carrinho pro fundo
da loja onde estava mais vazio. – Suba. – pedi pra ela subir em cima dos
produtos e empurrei nossas mercadorias para fora do supermercado atravessando
portas e paredes.
Com a confusão entre os narcisos,
passamos despercebidos até a rua de Ray onde, por puro azar o narciso caolho me
esperava.
− Só pode ser brincadeira. – disse parando o carrinho.
− Você… conhece esse narciso. –
perguntou Dil percebendo a maneira como nos encarávamos.
− Ele me persegue desde que cheguei
aqui.
− Se ele vir onde estamos, poderá
trazer outros.
− Ele não sobreviverá para tanto. – o
monstro parecia entender o que disse, pois ele fez uma careta horrenda antes de
se colocar em posição de ataque. – Fique do lado da casa de Ray. Assim que der
te empurro pra dentro.
Dil retirou a escopeta e mirou na
direção do narciso:
− Ou posso mata-lo agora mesmo.
− Não. Ele é bem resistente e não
quero ele caçando você também.
− Mas você disse que ele não vai…
− Dil, por favor. – pedi. Apesar
de estar confiante contra aquele narciso, eu sabia que seria uma luta difícil e
se houvesse falha, Dil teria um monstro vingativo atrás dela. Não poderia
arriscar. – Preparada?
− Sim.
− Vai!
Disparei uma bola de fogo contra o
narciso, mas parecendo adivinhar nosso plano, ele desviou para o lado que
Haydil corria. Ela parou e disparou de sua arma acertando de raspão o ombro do
monstro que grunhiu e foi pra cima dela. Irritado com a teimosia da índia, voei
pra cima dele imprensando-o contra a parede dando espaço pra Haydil correr até
o lado da casa de Ray.
O bichano abriu as asas me empurrando
pro outro lado da rua para em seguida vir em minha direção. Voei escapando por
pouco deixando que ele atingisse o poste. Virei e lancei uma bola de fogo
contra ele, mas o infeliz também era rápido e desviou por pouco. A esfera
derreteu parcialmente a estrutura do poste que se inclinou em minha direção.
Esperto ele voou contra os fios que prendiam o poste soltando a enorme barra de
ferro que caía em cima de mim.
Atravessei a parede que cedeu caindo
na minha sombra. Dentro da casa corri até a casa de Ray atravessando móveis,
bancadas, paredes até chegar ao quarto de minha amiga, a cozinha e então o
banheiro de onde ouvia mais alto o som de tiros. Num átimo meti a mão na parede
puxando Haydil e o carrinho de compras segundos antes de garras afiadíssimas
atravessarem a parede.
− Você está bem?
− Foi por pouco. E voc… Dan, não!
Mas eu já tinha atravessado a parede
com mãos em chamas acertando em cheio o olho cortado do narciso que só não voou
devido às garras presas a parede. Me virei e fui pra cima dele novamente, mas o
infame parecia ter tanta ânsia de me derrotar quanto eu a ele e retirou a pata
da parede levando um pedaço de bloco junto e metendo com toda força contra
minha cara me levando a nocaute. Depois de garrafadas, bolas de fogo e tiros, o
monstro continuava de pé firme e forte e com apenas um soco eu fui levado ao
chão.
Ele veio caminhando sobre mim,
analisando o inimigo derrotado. Não era mais fome que o movia, mas a vingança,
o instinto de ser o alfa e para isso ele deveria me liquidar. É claro que não
ia desistir tão fácil. Adicionei mais um poder ao anel curando meu nariz
quebrado e estancando o sangramento do supercilio. Quando sua bocarra estava a
centímetros do meu pescoço puxei um dos fios soltos que chicoteavam no chão e
enfiei na cabeça dele atravessando a carcaça e atingindo diretamente o cérebro.
Ele estremeceu sendo eletrocutado até não poder mexer mais seu corpo sem vida.
Joguei-o pro lado e levantei vendo o
corpo de meu inimigo estendido no chão. Cuspi sobre ele e, por um instinto de
pura vaidade, deixe o corpo dele estendido bem ao lado da casa para que toda
vez que saísse visse o meu trunfo sobre o narciso vingativo-perseguidor. Ou
talvez para que se outros aparecessem, visse aquilo como uma mensagem clara de
que havia um matador de narcisos naquelas proximidades.
Seja pelo motivo que fosse, aquela
foi uma das minhas maiores burrices.
− Você está bem? – perguntou Dil
quando entrei limpando o sangue da ferida já curada.
− Tô sim. – disse satisfeito. – Só
preciso de um banho e arrumamos as compras. – e assim fizemos.
Naquela noite Gabby veio falar
conosco.
− E aí casal? – não respondemos. –
Como foi o dia?
− Tenso. – falou Dil.
− Descobrimos que o supermercado era
uma espécie de prisão. – expliquei.
− Prisão? Entre os próprios narcisos?
− Sim. – confirmamos.
− Essa é nova.
− Talvez o fato de não haver ninguém
aqui, pouco se sabe sobre eles. – arrisquei. – Cassandra, por exemplo, nem
lembrava que eles existiam.
− É um bom palpite…
− E quanto à maneira de nos tirar
daqui? – perguntei.
− Cassandra disse que já adiantou
bastante o boneco. Talvez em uma semana ou menos ele esteja pronto.
Eu olhei pra Dil que, apesar de
disfarçar, sabia exatamente o que ela pensava.
− O boneco de barro não vai servir,
Gabby. Precisamos de um portal.
A bruxa ia perguntar por que o boneco
não ia servir, quando o pensamento óbvio a deteve.
− Ah… criar um portal entre dimensões
não é uma coisa fácil. Nem mesmo os saltadores conseguem pular entre uma
dimensão e outra se já não estivesse lá antes.
− Eu sei que vocês conseguem. – disse
deixando Gabby encabulada.
− Ok. Vou falar com Cassandra.
− Obrigado. – disse antes de ela
sumir no espelho.
− Dan…
− Não vou discutir isso.
− Você me conhece há dois dias. Seus
amigos não têm a obrigação de me tirar daqui.
− Você já passou por muita coisa Dil. Não vou deixar você aqui sozinha.
− Por passar por muita coisa que já
estou acostumada. Se der pra você ir, vá.
− Não vou deixa-la aqui.
− Dan, sua teimosia pode deixar
nós dois aqui pra sempre.
− Eu já estive em dimensões paralelas
antes. Já saí delas inclusive com Mazda. Não há por que achar que não farei o
mesmo com você.
− Por que ta fazendo isso por mim?
"Toda vida é importante."
Foi a primeira coisa que pensei, mas não era só isso. Desde que vi Dil senti
uma ligação estranha com ela. Como se fôssemos muito próximos ou conectados de
alguma forma. Não era uma atração física. Era mais com uma irmandade.
− Uma vez enfrentei um amigo para
salvar uma moça que ambos éramos apaixonados. Os dois morreram. Praticamente em
minhas mãos. Desde então sigo uma espécie de mantra que diz que toda vida é
importante e deve ser preservada.
− Você matou o narciso além daqueles
assassinos, fora Mazda que você também tentou matar.
− Matei vidas para salvar outras
tantas. Todas as guerras que enfrentei, todos os inimigos que tirei a vida, foi
para que outras não fossem tiradas.
− Quantas vidas Mazda tirou desde que
você falhou em mata-lo?
− A minha.
Os dias passaram sem muitas
surpresas. Com a quantidade de mantimentos que pegamos, não precisávamos sair e
quem não é visto não é lembrado. Recebíamos visitas no espelho de Gabby, Ray, Tio Mai e Lacerda, apesar de só Gabby consegui nos ver. Cassandra vinha
pouco, até porque, Mazda não podia desconfiar do que ela tava fazendo.
Já tava me acostumando com a ausência
dela quando um grito feminino veio do banheiro me tirando da leitura de uns
quadrinhos que achei vasculhando a parte espelho da casa de Ray.
− Dil, o que houve? – perguntei
indo pra porta do banheiro onde ela saia de toalha.
− Eu acabei de ver um grupo de
narciso parado na rua onde você matou aquele. Eles pareciam estranhamente…
− Organizados?
− Sim.
Fui até o banheiro olhar pelo buraco
que o caolho fez e notei uma rachadura na parede que ia praticamente do chão
até o teto. Olhando pela fenda, vi os animais empoleirados nas varandas, em pé
no passeio e nos telhados. Fui até a sala onde afastei a estante e, pelo olho
mágico vi a cena se repetir, contudo com um número dez vezes maior de narcisos.
Praticamente todas as casas possuíam um grupo de no mínimo cinco narcisos em
cada andar parados como um bando de pássaros em árvores. Eles pareciam esperar
alguma coisa.
− E então? – perguntou ela já vestida
e de arma em punho.
− Acho que fiz uma besteira. – em
poucas palavras expliquei que deixar o corpo daquele narciso lá, pode ter
resultado num efeito inverso: em vez de medo, eles se irritaram com meu sinal
e, através da fenda acabaram nos vendo. – Eu não sei o que eles estão
esperando, nem quanto tempo irão aguardar, mas sei que não poderemos vencer
todos.
− Quantos você acha que tem lá fora?
Uns 50, 100?
− Eu diria que uns quinhentos. – sob
o olhar abismado de Dil fui ao espelho: − Gabby? Gabriella?
− Oi, Dan.
− Cassandra? – ela parecia pálida.
− Oi… Duas notícias, uma boa e uma
má. A boa é que sua percepção numérica tá excelente. A ruim é que não achamos
uma forma de abrir um portal até aí.
− Dan. – disse Dil se
aproximando de mim. – Use o boneco.
− Ele também não ficou pronto. Mazda
começou a desconfiar e tivemos que parar por uns tempos.
− Se não der um jeito de nos tirarmos
daqui, vamos morrer.
− A única coisa que posso fazer é
colocá-lo numa carta novamente.
− Isso é ridículo. – falou Gabby
aparecendo com cara de quem acabara de acordar. Atrás dela Ray aparentava a
mesma cara.
− Existem mais de quinhentos narcisos
ao redor da casa, o boneco não está pronto e não há como abrir um portal entre
as dimensões.
− Eu posso colocar isso como poder. –
sugeri.
− O anel não tem tanta energia assim.
O máximo que você conseguiria utilizando esse poder seria abrir um portal já
existente e não criar um.
− A magia que você usou pra tirá-lo
da carta e manda-lo pro espelho utiliza uma espécie de portal, não? – indagou
Gabby.
− Na verdade é uma técnica de
transferência.
− E se você transferisse um portal já
existente pra lá? – todos olharam para a garota de cabelos encaracolados.
− E onde arranjaríamos um portal,
Minha Inha? – perguntou Ray.
− Usaríamos os portais da Lapa. Se
fizermos com que dois deles se intercomuniquem e mandarmos um para aí,
criaremos um portal ligando os dois mundos.
− Genial! – falou Cassandra contente.
− Minha Inha, você broca!
− Ok, mas como vamos sair dessa casa
sitiada… − então de sitiada, a casa passou a estar sob ataque massivo dos
narcisos.
O imóvel estremeceu como se sofresse
um terremoto. Parecia que todos os narcisos atacaram a casa em peso numa
tentativa, felizmente frustrada, de levar o local abaixo.
− Façam o processo do portal. Eu
darei um jeito de chegar ate lá. – disse saindo do banheiro e lançando uma bola
de fogo contra três narcisos que arrobaram parcialmente a porta e quebraram
metade da mesa que a obstruía.
As chamas se espalharam criando uma
porta de fogo que impedia que outros entrassem. Dil já mirava sua arma
contra a porta que sofria um dano semelhante, mas não tão grave. Fui até a sala
e fechei a porta do quarto da mãe de Ray onde cinco narcisos haviam conseguido
entrar com sucesso. Coloquei um sofá para tapar a porta e Dil pôs o outro
pra reforçar a entrada.
− A casa não vai resistir por muito
tempo. – disse ela quando uma rachadura se formou no teto perigosamente.
− O banheiro. – lembrei.
Corremos quando um narciso desafiou
as chamas e entrou de vez pela porta que dava na área externa da casa. Sem
pena, Dil mirou e atirou diversas vezes contra ele enquanto eu empurrava a
geladeira contra a porta do banheiro. Contudo um narciso se esgueirou pela
porta antes que a bloqueasse completamente e sem que eu visse, pulou por cima
de mim abocanhando meu ombro.
Haydil se virou e, com sua soqueira
improvisada disparou uma carga alta de eletricidade contra o monstro que caiu
do meu lado tostado.
− Você está bem?
− Tô. Temos que sair logo daqui. –
disse curando meu braço, mas não completamente.
− Como?
A ferida criou uma crosta negra no
meu ombro que caiu como uma gosma deixando no lugar só uma mancha preta.
− Não consegue se curar? – perguntou
ela observando a mancha em meu braço.
− Parece que não totalmente. Mas já
sei como iremos sair daqui.
A ideia que parecia não ter muito
cabimento se mostrou ótima. Os dutos de esgoto eram imensos e, por não haver
vida naquela dimensão (tão pouco espelhos), eram secos como se fossem apenas réplicas dos originais quando criados.
− Devo admitir que a ideia é boa, mas
como saberemos pra onde ir? – perguntou a índia.
− Meu irmão já trabalhou na
construção desses dutos. Todos os canais dão num canal principal que lança
todos os dejetos no sistema de tratamento central. No entanto, os canais que
saem de grandes construções como shoppings e estações são maiores por conter um
fluxo maior. Achamos o duto principal e procuramos um que seja gigantesco que é
o que manda dejetos da Lapa e dos shoppings adjacentes.
− Não podemos ficar vagando por aqui
indefinidamente. No escuro somos como faróis.
− Não ficaremos. Mas por precaução,
vou aumentar a potência de sua soqueira para um alcance maior. – dessa forma,
fiz com que ela pudesse disparar raios há uma distância média de uns vinte
metros.
Seguimos pelos dutos e, como havia
imaginado, não demorou muito até encontrarmos o duto principal. Ele era quase
uma galeria de tão grande. Seguimos pro norte e, também sem muita demora,
encontramos o duto que vinha da Lapa.
− Bingo!
Aceleramos o passo até dar no esgoto
da estação. Subimos pro subsolo e de lá pro primeiro andar onde já era aberto.
A saída daquele mundo estava cada vez mais perto. No pé da escada que dava ao
segundo andar, onde seria o meio da estação, Cassandra havia dado um jeito de
pôr um espelho enorme de onde transferiu a cabine que nos teletransportaria.
Seria lindo… não fosse pelo grupo de recepção.
No pé da escada, numa contagem rápida
havia uns vinte narcisos prostrados de bocarras abertas nos olhando fixo entre
a cabine e nós. No topo cinco narcisos de tamanhos descomunais faziam guarda de
uma mulher extremamente branca, alta, de corpo voluptuoso, cabelos loiros
imensos e lisos em um vestido de ouro.
Paramos no meio da escada a uma
distância segura do grupo de narcisos normais que nos aguardavam.
− Ora, ora quem eu encontro aqui... − disse a mulher enquanto descia as
escadas revelando algumas coisas que de longe não dava para perceber.
− Você. − falou Dil incrédula.
− Sim, eu. Surpresa, amor? −
perguntou ainda descendo de forma que pude observar que sua altura se devia à
um salto plataforma de uns vinte centímetros.
− O que faz aqui?
− Esse é meu mundo. − respondeu com
simplicidade no vestido que percebi que era latão dourado. − A pergunta é: o
que você faz aqui? − indagou alisando os cabelos mostrando mechas pretas
o que indicava que o loiro era falso.
− Você mandou Desprezo me deixar
aqui.
− Linda, mas não muito inteligente. −
ao chegar à metade da escada acompanhada pelos olhos dos narcisos gigantes,
percebi que não era só a cor do cabelo que era falsa, mas o cabelo era
falso!
− Quem é você? − perguntei no
silêncio das duas.
− Eu sou Vaidade! − a cor da pele
também não era tão branca à medida que ela descia. − Mãe dos narcisos, − suas
feições atrás daquela farinha de trigo toda não eram tão curvilíneas assim, mas
bem quadradas. − Senhora do Mundo-espelho e do Mundo-reflexo, − nem a cor dos
olhos dela eram verdadeiros. − dona do destino de vocês. − no pé da escada, ao
lado do espelho e da cabine, percebi que Vaidade nem mesmo era mulher.
− O que quer conosco? − perguntou Dil.
− Achei que eu não servia nem como serva pra você.
− E ainda não serve, baby. Mas isso
não significa que você seja de toda inútil.
− Deixe-nos ir.
− Eu ainda não me dirigir a você,
bofe.
− Mas eu sim.
− Dan, não a irrite. − me advertiu Dil enquanto o Vaidade ria afetadamente. − O que quer comigo?
− Seu corpinho mediano.
"Olha quem fala" pensei.
− O quê? Por quê?
− Porque eu quero, ora.
Então olhando ela do lado do espelho
e da cabine de teletransporte que ela não se deu ao trabalho nem de arranhar
com suas unhas postiças eu percebi o motivo dela querer o corpo de Dil.
− Você quer ir pro meu mundo.
− Hahahahaha. Acha que não estou lá
todos os dias? Acha que ainda há uma pessoa no seu mundinho que não me leve no
coração? Tolinho...
− Você está lá como sentimento, não
presencialmente.
− Porque não quero.
− Porque não pode.
− Eu posso tudo, meu amor.
− Então venha aqui tomar o corpo
dela.
− Não preciso, querido. Eu tenho uma
coisa chamada súditos.
Os vinte e poucos narcisos avançaram
contra nós. Peguei Dil nos braços e desci as escadas voando. Quando eles
estavam debaixo da parte coberta da escada lancei bolas de fogo no teto que
caiu em cima da maioria deles. Os que sobreviveram, foram alvos fáceis para
minhas labaredas e os raios e tiros das armas de Dil que pus em frente a ela
antes de voltar a subir as escadas.
− Fique aqui. − sabendo que seu corpo
mais do que nunca estava sendo cobiçado, ela não discordou.
Dessa vez foi os narcisos maiores que
veio em minha direção quando inesperadamente um fogo lilás vindo da cabine de
teletransporte atingiu o mais adiantado fazendo-o passar direto. Sem entender,
eu e o travesti da Vaidade viu Gabby (que disparara o poder) saindo da cabine seguida
por Ray que, mostrando unhas e dentes afiados pulou em cima da deusa que deu
uma cambalhota fazendo a vampira passar por cima dela, Lacerda que lançou cabos
elétricos segurando outro narciso gigante que avançava sobre mim e por fim Tio Mai que com seu rifle dava tiros certeiros contra outros dois narcisos.
O quinto recebeu um globo de fogo bem
nas fuças também passando direto. Os dois narcisos atingidos por Tio Mai deram
meia volta e foram para ele e Gabby respectivamente. Ele atirou continuamente sem
muito efeito.
− Deixe-o entrar. − falou Cassandra. Tio Mai então desviou bem na hora e o monstro entrou pela cabine, mas em vez de sair no
outro mundo, ele entrou no manto estrelado que Cassandra jogou na outra entrada
do aparelho. Ela havia permanecido no outro mundo onde nos via pelo espelho.
O que foi em direção a Gabby também passou
direto, pois ela havia se teletransportado pro lado e virou lançando um feitiço
que petrificou o imenso monstro que se chocou contra a escada se despedaçando.
No entanto Gabby ficou de costas pra Vaidade que a desarmou com um golpe e a
derrubou com outro. Entretanto ela também estava de costas e não viu quando Ray
cravou suas unhas em sua coluna.
Vaidade urrou de dor se transformando
em um narciso três vezes maior que os grandões que vieram com ela. Aturdida,
Ray tomou um coice atravessando duas pilastras dos pontos antes de parar. Ela
voltou a sua forma travestida novamente sem sair do salto.
− Você é um horror. − Disse Gabby
ainda do chão.
− Você não viu nada, meu amor. −
Vaidade partiu pra cima da bruxa que lançou labaredas lilases novamente.
Uma coluna de fogo se formou onde
Vaidade estava, mas quando as chamas apagaram, ela estava incólume protegida
por suas imensas asas.
− Droga. − Gabby tentou se levantar,
mas com passos rápidos, Vaidade cravou suas garras na coxa de minha amiga.
Com o facão que peguei na minha
casa-espelho decepei o braço do monstro-travesti e afastei Gabby do alcance
dela.
− Você está bem?
− Preciso da minha varinha pra me
curar.
− Fique aqui. − entrei no chão no exato
momento em que o narciso que Lacerda prendera com um cabo eletrificado cortou sua
coleira elétrica com as garras e voou pra cima dele.
Com um calibre maior, Tio Mai deu
cobertura dando tiros com maior efeito no monstro. Nesse ínterim, saí do chão
pegando a varinha de Gabby cercando com ela, Vaidade. Achando erroneamente que
não poderia usar a varinha foi pra cima da bruxa ferida, contudo eu podia
controlar armas e aquela varinha nada mais era do que a arma de um bruxo. O
poder indefinido atingiu as costas dela derrubando-a dando tempo pra Gabby se
teletransportar para o meu lado e pegar a varinha de novo conjurando correntes
que a prenderam no chão. Mas ela também tinha suas cartas nas mangas e se
transformou novamente em um narciso tamanho família e, com a boca, partiu as
grossas correntes. Ela também pegou o braço decepado e recolocou no lugar e,
com este mesmo nos atacou destruindo a parede que Gabby conjurou. Eu pulei para
um lado e Gabby para o outro.
Do lado onde Gabby estava, Tio Mai apontava a arma para todos os lados, pois o narciso que ele atirava havia voado
para parte aberta escapando dos tiros do garoto de casaco verde. Enquanto isso
Lacerda já subia com Dil quando o narciso que lancei a bola de fogo voo em
direção a eles. Tio Mai mirou precisamente na cabeça dele no exato momento em
que o monstro que fugiu voltara indo em sua direção. Destra, Gabby apontou a
varinha para ele, mas ela estava ao alcance de Vaidade que recebeu uma das
minhas facas pegando fogo bem no seu olho errando Gabby que disparou uma
energia que desintegrou o narciso deixando, assim, que Tio Mai acertasse a
cabeça do outro monstro abatendo-o.
− Vamos, rápido! − gritou Cassandra
do outro lado.
Irada, Vaidade retirou a faca do olho
e lançou contra o espelho estilhaçando-o ao mesmo tempo em que me dava um coice
igual ao que deu em Ray. Por sorte ela pulou atrás de mim para amortecer meu
impacto contra as proteções dos pontos vazio.
− Nossa, você é bem reflexivo, hein.
− brincou falando do impacto do meu corpo contra o dela.
Entre as escadas da estação, Tio Mai dava novamente cobertura para Lacerda levar Dil, mas as balas era bolinhas de
papel no imenso corpo de Vaidade. Ela tencionou avançar contra o trio, mas
Gabby disparou outro feitiço, dessa vez contra o teto que desabou sobre a
monstra. Com essa cobertura mais eficiente, Lacerda passou com Dil pro nosso
mundo.
− Vamos Gabby.
− E Ray e Bananinha? − perguntou não mais
nos vendo.
− Eles atravessaram o chão e devem
surgir do meu lado em segundos.
Acalmada ela passou pela cabine no
mesmo momento em que eu e Ray subimos como ele havia previsto.
− Você primeiro. − disse Ray
apontando pra cabine.
Ao entrar, outra porta se abriu
dentro do aparelho revelando meu mundo o qual me foi tirado tiranamente pelo
namorado de Cassandra. Mal dei um passou lá e Tio Mai caiu em cima de mim.
− O que houve?
− Não sei. Ray me empurrou do nada. −
explicou ele.
Levantamos rápido tencionando voltar
pela cabine quando o espelho do nosso lado que nos refletia, passou a mostra o
mundo reflexo novamente, dessa vez para todos os meus amigos.
− Me deem a índia, ou estraçalho a
morceguinha. − Falou Vaidade segurando Ray com sua enorme garra.
− Me leve no lugar dela. − falou Gabby já em desespero.
− Você tá com a varinha no ouvido? Eu
falei índia, não aprendiza de feiticeira.
− Não podemos entregar Dil. −
disse.
− Não podemos é deixar Ray com ela,
isso sim. − esbravejou Gabby.
− Não vou entregá-la.
− Bananinha, Ray é nossa amiga. −
ponderou Tio Mai .
− Ela é vampira, sabe se cuidar. −
retorqui.
− Dil também. Melhor que todos
nós, afinal ela passou anos lá com ela.
− Não vou dar-lhe a liberdade para em
seguida devolvê-la a prisão.
− Parem de falar como se eu não
estivesse aqui. − interrompeu a índia. − Eles têm razão, Dan: eu posso
sobreviver ao mundo espelho e à Vaidade melhor que ela.
− Não pode fazer isso...
− Eu devo fazer. Eles se sacrificaram
para me tirar também, devo retribuir. E mesmo que não quisesse voltar, eles são
maioria.
− Então eu vou com você.
− Só ela, fofis. − gritou Vaidade
pelo espelho restaurado do lado de lá.
− Isabel precisa de você, Dan. −
falou Cassandra que se mantivera calada.
− O quê?
− Mazda foi para lá semana passada
porque parece que o planeta sofrerá invasão iminente. Seus amigos precisam de
você.
− Nós tiramos ela uma vez, podemos
tirar de novo. − me garantiu Gabby.
Aquilo não era o bastante pra mim.
Deixar Dil voltar pro espelho era como deixar metade de mim lá.
A índia alisou meu rosto uma última
vez e se dirigiu a cabine enquanto no espelho Vaidade soltava Ray na frente da
máquina de teletransporte. Quando uma entrou a outra saiu pro abraço de urso de
Gabby e depois dos outros amigos. Pelo espelho vi Dil se encaminhar para
Vaidade que já estava em sua forma travestida novamente, embora, mesmo perto,
pelo espelho parecia uma loira escultural. Já Dil andava onde deveria estar
meu reflexo. Ela encarou o espelho da mesma forma que eu e, abruptamente sumiu
revelando meu rosto acabado e o quarteto num abraço sem fim.
− Você poderá trazê-la de volta,
Dan. − disse Cassandra jogando seu manto no espelho fazendo-o desaparecer. −
Mas agora, outros precisam de você.
Olhei fundo nos olhos cinzentos da cigana
criando mais um poder no anel, o de abrir qualquer portal já existente entre
qualquer lugar.
− Certifique-se que esses portais não
serão tocados até eu voltar.
− Pode deixar comigo.
Então, sem mais delongas, subi as escadas da
Lapa em direção a outra escada o mais rápido que pude.
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