Capítulo V - Os Anéis Do Poder: A Meretriz E O Fiel
Já haviam se
passado três meses após eu receber, com muito esforço e suor – devo acrescentar
– o anel dos Meireles Escritores, mas eu ainda estava exultante com o fato, não
sendo raro eu me pegar admirando ele envolta do meu mindinho.
– Acorda
Bananinha! Ta dormindo? – disse Quatro-Olhos (Yuri) me tirando do meu devaneio
e de idiota. Todos os que ouviram riram da minha cara já não muito paciente.
Ao acabar a aula
todos saíram para o corredor se prostrar no muro do primeiro andar do pavilhão
A do CEAT. Eu ia falar com Vandinho (Evandro), mas Quatro-Olhos se adiantou
para lhe chamar para uma conversa que fez questão de enfatizar que eu estava de
fora dela:
– Dê licença aí
Bananinha, que eu e Vandinho queremos conversar em particular. – e após isso
ele levou nosso amigo para um espaço vazio no lugar de uma sala no fim do
corredor.
– Por que Quatro-Olhos
ta pegando tanto no meu pé, hein? – perguntei a Nokia (Renan), um colega nosso
que parecia viver dentro do celular, pois não tirava os olhos dele.
– Seria porque
você quer pegar a mulher dele?
Eu ia perguntar de
quem ele estava falando já que Quatro-Olhos não tinha namorada, mas na mesma
hora Lis (Lissandra) apareceu para nos cumprimentar e logo eu percebi.
Lis não era a mais
bonita da sala, mas ela atraiu dois corações ao mesmo tempo: o meu e o de Quatro-Olhos.
Da última vez que eu e um amigo gostamos da mesma menina, eu me senti rejeitado
e até mesmo hostilizado por ele e era exatamente o que acontecia comigo e Quatro-Olhos,
mas ao contrário do primeiro caso, que meu amigo ficou com a tal garota, Quatro-Olhos
não mostrava nenhum sinal de querer ficar com Lis. Então afinal de contas, por
que diabo ele me trata desse jeito?
– Não faço ideia.
– Qual é Vandinho?
Vocês dois parecem namorados: toda hora Quatro-Olhos te puxa prum canto pra
conversar e ele nunca te disse por que ele me trata assim?
– To te dizendo:
eu não sei. Ele nunca comentou nada a respeito.
– E quanto a Lis?
– O quê que tem?
– Ele falou a
respeito?
– O que você já
sabe: que ele gosta dela.
– E…?
– Só.
– Vandinho, eu
posso ser o mais novo da classe, mas eu não sou criança.
– Se você tem
tantas perguntas, por que você não vai lá falar com ele?
– Se ele parasse
de me hostilizar, talvez eu tentasse.
Não tinha jeito:
Vandinho sabia de alguma coisa sobre o modo estranho de Quatro-Olhos, mas não
quis me dizer. Com essa dúvida eu fui pra casa sem perceber muito os olhares de
uma ou outra garota. É… eu tava crescendo e ficando mais aprazível aos olhares
femininos, mas a única que me interessava naquele momento era a garota que meu
amigo também gostava, mas parecia não querer, sabe lá Deus por quê.
Eu cheguei à minha
rua, aéreo… até eu vê-la. Ela era linda: tinha cabelos curtos e negros, era
branca como a neve, tinha uma tatuagem nas costas de um dragão, seus olhos eram
perfeitamente redondos e negros como a noite e era prostituta.
Fora isso eu sabia
que ela era argentina, se chamava Maçã, era filha de um amigo de sua chefe, mãe
de meu colega Poteta.
Ah, também sabia
que às vezes ela ganhava três vezes a mais com um homem do que suas colegas
conseguiam a noite inteira. Também pudera, a mulher era linda do tipo que você
pagaria só pra ficar olhando. Mas apesar do nome eu não ia comer dessa fruta.
Não pagando.
A semana chegou ao
final e meu único passo além foi saber que de fato Quatro-Olhos não queria nada
com Lis, mas se ele não tinha nenhuma intenção de namorar com ela, por que ele
me trata tão mal? Eu tinha que descobrir antes das provas finais e antes de eu
tentar alguma coisa com Lis, afinal eu tinha que saber em que terreno eu tava
me metendo. Resolvi então pesquisar o passado de Quatro-Olhos pra ver se eu
tinha alguma luz e pra isso eu interroguei todos os colegas que estudaram com
ele no ginásio; descobrir uma coisa interessante: ele gostou de duas garotas e
pra nenhuma delas ele soltou uma indireta que fosse.
As duas garotas
eram Gabby e Fatinha da sala dois e três respectivamente. E uma coisa é bem
curiosa nisso tudo: ele havia me dito que Gabby gostava dele, mas se ele também
gostava dela, o que impedia de ele ficar com a menina?
Outra coisa
intrigante é que Fatinha era linda e estava solteira e uma coisa é certa:
ninguém gosta de ficar sozinho e Quatro-Olhos não é do tipo feio. Então, afinal
de contas o que estava acontecendo?
Parte da resposta
viria da pessoa que, confesso, menos esperava: Mile (Jamile), a garota da minha
sala que era afim de mim. Tudo começou quando fomos fazer um teste em dupla e
eu fiz com ela.
– Você não para de
olhar para a mesa de Lis e Quatro-Olhos. Você ta com ciúmes?
– Só to querendo a
resposta da terceira questão. – fingir não ligar pro comentário.
– Eles não dão
pesca.
– Lis vai dar.
– Por quê? Por que
você é afim dela?
Eu me virei um
pouco surpreso.
– Eu sei que
pareço com Quatro-Olhos, mas é ele que gosta dela e não eu.
– Me engana que eu
gosto. Eu sei que os dois gostam… mas parece que você tem mais chance. – disse
ela com um suspiro consternado.
– Por que acha
isso? – perguntei conhecendo bem a resposta.
– Porque ele é
crente.
– Como é? – é… nem
tão bem assim.
Ela deu um tempo
fingindo analisar a prova enquanto o professor passava e quando ele estava de
costas ela me explicou.
– Ele nunca vai
pedir Lis em namoro porque ele é crente.
– Isso não é
motivo. Namorar não é pecado.
– Mas pode levar a
outro: a fornicação.
Eu fiquei um
minuto calado. Aquilo de fato fazia algum sentido, mas poderia ser fruto de uma
opinião e não de um fato e não adiantaria saber como ela soube daquilo, afinal
ela é nova na escola como eu; eu tinha que saber de alguém que detinha o
conhecimento do tal motivo que nem os antigos amigos de Quatro-Olhos sabiam. E
esse alguém era Vandinho. Por azar ele
já tinha acabado a prova e eu só o veria na semana seguinte. Mas se eu pude
aguardar um mês inteiro de expectativa pelo meu livro, eu poderia esperar por
isso também.
Na volta pra casa a chuva me pegou, mas eu não
tava afim de sair correndo por ai desbandeirado. Ainda bem, porque se eu o
fizesse não veria Maçã sendo atacada por dois caras no beco ao lado do Prato do
Povo.
Eu cheguei dando
logo uma voadora em um dos pivetes que foi parar quase no outro lado do beco.
Quando me virei pro outro ele empurrou Maçã pra cima de mim e sacou um
trinta-e-oito segurando tremulamente o gatilho com o dedo indicador ornamentado
por um anel rubro-prata.
– Você! – dissemos
em uníssono.
– O que você tem
contra mim? – perguntou ele.
– Deixe eu ver…
você roubou um anel que eu estava de olho, quebrou meu antebraço quando eu
estava escrevendo o livro mais importante da minha vida e agora ta tentando
estuprar uma conhecida minha, fora que no dia do antebraço você ia me assaltar.
Esqueci alguma coisa?
Enquanto ele
refletia sobre o que eu disse o outro cara se levantou e se aproximou meio
cambaleante.
– Ta certo… – ele
abaixou a arma. – estamos quites agora. Eu nunca mais quero te ver de novo.
– Seria um prazer
se isso não acontecesse! – disse enquanto ele e o seu comparsa desapareciam no
fim do beco.
– Obrigada. –
disse quando eu a soltei.
– Você está bem?
– Sim. – ela
tremia. – Pode parecer, mas isso não é tão incomum.
– E o que você faz
para se proteger?
– Eu deveria usar
o fogo e a força do dragão em minhas costas, mas aquele outro cara anulou meu
poder só com sua presença. E quanto a isso… – ela mostrou um anel prateado com
uma pedra quadrada preta engastada nele pendurada numa corrente em seu pescoço.
– eu tenho mais medo do que esse anel pode trazer do que daqueles caras.
– O que tem esse anel?
– Ele matou minha
mãe. – disse ela fria.
– Eu…
– Não sinta. E
mais uma vez obrigada Braço.
– Vo-você sabe meu
nome?
– Seu e de todo
mundo que fica lá na casa de Nêm. Eu sou boa com nomes. – ela sorriu e
tencionou sair do beco.
– Então… deixe que
eu te acompanhe.
– Gostaria mesmo
de andar na minha companhia?
– Sabe sobre
aquela coisa de que quando você salva uma vida ela lhe pertence?
Ela riu.
– Espero que não
pense que eu vou transar com você depois disso. – disse me deixando vermelho.
– Isso nem passou
pela minha cabeça.
Andamos até a
entrada do Duque de Caxias, calados até que de repente me vi perguntando:
– Por que você faz
isso? Quero dizer… por que vende seu corpo? – achei que ela ficaria magoada ou
chateada, mas nem constrangida ficou.
– Preciso pagar
minha faculdade. – disse simplesmente. – Meu pai é pobre e como minha mãe
morreu esse foi o único jeito.
– E você gosta do
que faz?
– Você acaba se
acostumando. E Nêm sempre me arranja os mais educados e ricos.
“É difícil
imaginar algum rico entrando naquela casa pequena.” Pensei, mas nada disse.
– Que bom que você
não é como os outros. – disse depois de um tempo. – Geralmente eles me olham ou
com nojo ou apenas como se eu fosse um objeto. Mas você me olha como pessoa.
– É como eu te
vejo.
Quando chegamos à
porta de Nêm a própria perguntou.
– Cliente novo?!
– Não. Só um
amigo. – respondeu Maçã.
O fim de semana
foi meio chato: tive que estudar para as provas finais que se aproximavam, mas
não sacava nada de física, literatura ou gramática. O que eu gosto é de
educação sexual e eu odeio química!
Resolvi sair um pouco pra respirar. Fui à casa
da avó de Pombinho que é na entrada da rua, mas ele tinha ido à casa de um
amigo. Na volta eu encontrei Maçã. Nossos olhos se encontraram por menos de
dois segundos, pois um míssil entrou no primeiro andar da casa de Nêm
explodindo o andar jogando pedra e poeira pra tudo que era lado.
Após me abaixar,
minha primeira reação foi ir de encontro a Maçã pra ver se ela estava bem.
Quando a confusão
tava menor, já que os bombeiros haviam chegado e estavam apagando o fogo, eu me
sentei ao lado dela em uma das cadeiras que geralmente ficava do lado de fora
em frente à casa.
– Você está bem?
– Acho que sim. –
ela tava meio chorosa.
– Você se feriu…
ta doendo em algum lugar?
Após balançar a
cabeça ela disse:
– Todas as minhas
amigas… estavam lá dentro.
Imediatamente veio
na minha cabeça que ela também poderia ta lá dentro e morta agora. Em seguida
eu pensava em quem poderia ter feito isso quando Nêm já gritava desesperada que
foram eles, foram eles, foram eles. Aproveitei que Poteta se aproximou e
perguntei:
– De quem sua mãe
ta falando Poteta?
– De um grupo aí
chamado Templários.
– Os Templários?!
– Perguntou Maçã.
– Eles não lutaram
nas Cruzadas há muitos séculos atrás? – perguntei.
– Não. Quer dizer,
também, mas os de hoje são um grupo extremamente religioso que é contra as
prostitutas, os drogados, os ladrões, os homossexuais, enfim, toda a “escória”
da sociedade. – respondeu a garota.
– São como uma
espécie de justiceiros?
– Quase isso. Eles
querem purificar a Terra tirando o pecado dela.
– E você sabia
disso?
– Sim, claro.
– Como você se
permitiu correr um risco desses?
– Eu tenho que
pagar minha faculdade Braço.
Eu vi que ela tava
certa, mas tinha que ter outro jeito.
– Eu recebo todo
mês uma mesada que vale como pensão de meu pai. Como eu só gasto com besteira
eu poderia dá-lo a você. É um bom dinheiro.
– Não Braço,
obrigada.
– Por que não? –
perguntei já ficando irritado.
– Eu não acho
justo você me dar sua mesada. Minha faculdade é problema meu e eu tenho que
resolvê-lo, não você.
– Mas eu insisto.
Eu não quero que você vire alvo desses fanáticos.
– Eu não vou
deixar de ganhar meu dinheiro honestamente por causa de uns mal resolvidos que
ficam por ai atazanando os outros.
– Eles não estão
atazanando as pessoas, eles estão matando elas. E você é um alvo. Tem
que largar essa profissão agora!
– Braço, você não
é meu pai nem meu namorado, portanto deixe que eu cuido da minha vida e você da
sua! – após dizer isso ela se levantou e foi consolar Nêm.
– Não se preocupe:
ela te ama. – disse Poteta do nada.
– É. Só se… for. –
ao olhar para a saída da rua infestada de curiosos eu vi o cara que tentou
estuprar Maçã.
Ele olhava aquela
cena com certo interesse que não me escapou. “O quê que ele tava fazendo
aqui?”. Após me ver ele se retirou rápido. Tentei alcançá-lo, mas a multidão me
retardou e eu o perdi de vista.
Dessa vez era o
contrário: eu ia pro colégio pensando nos problemas da rua e não o oposto. Mas
isso foi rápido, pois eu vi Vandinho conversando com uma menina da sala três (a
mesma de Fatinha) e logo em seguida Quatro-Olhos veio lhe falar uma coisa que o
fez deixá-la lá sozinha, e antes que eu me aproximasse Dark, Lacerda e Guilhotina,
os três da sala dois, chegaram até ela. O último deu-lhe um beijo na boca e eu
percebi: Vandinho gostava da garota, mas ela era namorada de um dos caras do
trio DeGoLa: o pior e mais perigoso trio do CEAT. E isso era ótimo! Se eu
conseguisse armar Vandinho com aquela garota ele poderia me retribuir me
dizendo por que Quatro-Olhos não quer dar uns pegas em Lis.
Indo pra sala eu
lembrei de que havia um trio perigoso assim na época que meu irmão estudou lá.
Eles eram a Tríade do Mal (é, naquela época eles não tinham muita
criatividade). Três repetentes do terceiro ano que comia (ou estuprava) todas
as meninas dos anos anteriores e controlava os presidentes do grêmio
estudantil. Quando meu irmão entrou no colégio ele queria entrar no grêmio
justamente pra acabar com a festa deles, mas os caras eram fortes, poderoso e
tinha muitos aliados incluindo entre os professores. Então a solução para
tirá-los do poder foi simples: primeiro os resultados foram sabotados para
passá-los de ano o que seria impossível de acontecer de forma normal. Nas
férias ele se juntou com as mentes mais brilhantes do colégio (os CDF’s) para
cortar os tentáculos remanescentes.
Dos alunos foi
fácil: da mesma maneira que resultados foram alterados para passar a Tríade,
cartas de expulsões foram expedidas para os comparsas menos influentes e
poderosos. Ao mesmo tempo, professores foram acusados de terem estuprado
meninas ou forçá-las a transar com eles em troca da aprovação. Apesar de alguns
professores realmente terem feito isso com algumas meninas, todas as que foram
violentadas, por eles ou pelo trio, acusaram os mestres.
Resultado: em dois
anos o Anísio Teixeira foi limpo e reorganizado. Mas eu não tinha dois anos, eu
tinha duas semanas e olhe lá. A priori eu tinha que investigá-los assim como eu
fiz com Quatro-Olhos. Descobri coisas interessantes: o líder Dark, namorava a
tal Gabby que gostou de Quatro-Olhos e foi gostada por ele. O cara era forte
feito um touro e burro feito uma porta.
O tal do Guilhotina
vivia vestindo uma calça e/ou uma jaqueta do exército. Suas pernas eram tão
perigosas quanto os punhos de Dark que, segundo uma suspeita pessoal, era
chifrado pelo colega, pois Gabby se amarrava em um uniforme bélico.
Por último tinha Lacerda
que, por incrível que pareça, era da mesma religião que Quatro-Olhos. O cara
não tinha nenhum poder específico fora sua massa encefálica extremamente
desenvolvida (o cara era quase um gênio). E ele também gostava de Gabby.
Pelo visto ela
seria o alicerce a ser atingido para demolir os DeGoLa.
– Vandinho eu
posso falar com você?
– Peraí Bananinha,
que eu vou…
– Agora eu
vou falar com ele Quatro-Olhos! – disse firme, quase ríspido. – Seja educado e
espere. – com esse “cala-boca” eu puxei Vandinho prum canto e lhe fiz minha
proposta.
– E quem lhe disse
que eu sou afim dela?
– Eu já lhe disse
Vandinho que eu não sou criança.
– É… você se
parece mais com Quatro-Olhos do que pensa.
– Vamos deixar Quatro-Olhos
fora disso. Pelo menos por enquanto.
– É. Eu to afim de
Sarinha sim. Mas como você já deve ter percebido, ela namora com o G dos
DeGoLa: o soldadinho de chumbo.
– Se quiser eu te
armo com ela.
– Só se você
quiser morrer e me levar junto.
– Relaxe. Eles não
são tão perigosos assim. Apesar do nome eles nunca mataram ninguém.
– Não quero ser o
primeiro nem o segundo.
– Confie em mim
Vandinho. Eu vou botar essa menina na sua mão. Mas não quero mentir pra você,
isso vai lhe custar uma informação. E acho que você sabe qual é?
– Rapaz, esqueça Quatro-Olhos.
Parece que você ta afim dele e não de Lis.
– Não Vandinho, é
ele que ta afim dela e não faz nada e ainda por cima desconta sua inércia em
cima de mim.
– Então? Você já
tem o fato, o que mais precisa?
– Do motivo. Ele
não ta fazendo isso à toa. Tem que ter uma explicação e se você não quiser me
dizer por bem, arriscarei nossas vidas pra saber.
Houve uma breve
pausa.
– Você faria isso
mesmo?
– Eu não posso me
arriscar a ter alguma coisa com Lis ganhando de Quatro-Olhos por W.O. Isso não
seria justo.
Ele meditou um
pouco então aceitou.
– Tudo bem. Quero
ver até onde você pode ir. Se você conseguir tirar os “ReBoLa” do meu caminho
eu lhe conto até quando foi que eu dei uns pega em Lis.
– Hein?
Ele se acabou na
risada.
– Brincadeira.
O plano era tão
simples quanto o do meu irmão. Primeiro eu lancei a semente do mal espalhando o
boato de que Gabby de fato pegava Guilhotina nas entocas. Contei para Tio Mai
(Mailson), amigo de Lacerda que estudava na minha sala e frequentava a
congregação dele e de Quatro-Olhos. Isso, é claro, chegou aos ouvidos do
apaixonado Lacerda que infelizmente resolveu averiguar antes de comentar
qualquer coisa com o chefinho. Para isso ele mandou que Max investigasse o
caso, então eu tinha que dar-lhe um empurrãozinho em seu trabalho.
Diante disso criei
um personagem chamado Eku (de equação que se define por: num lado está à
incógnita [minha identidade], do outro a resposta [que é o que eu vou dar a Max]).
Pedi para que meu
pai criasse, junto com meu irmão, um traje que me auxiliasse na minha
investigação conjugal. A roupa era toda preta composta por um boné, óculos
escuros, uma bandana pra botar no rosto, uma camisa, um capote de zíper e
bolso, um par de luvas de caratê, uma calça jeans e tênis.
– Você parece que
está de luto. – comentou meu pai.
– O senhor não
quer que eu use um collant azul e vermelho né?
– Não. – disse
rindo.
Para experimentar
meu traje eu fui atrás do ladrãozinho estuprador. Ele estava na ladeira do
Terceiro Centro fazendo com um estudante do Kennedy o mesmo que fez comigo:
pedindo dez centavos. A cena era irritantemente igual (exceto pela cara de
boboca do garoto que eu acho que eu não tinha).
– Quem é você? – o
disfarce funcionava: ele não me reconheceu.
– Isso não
importa. O que importa é o que você estava fazendo na Rua Bela Vista do Bonfim
no domingo. É um pouco longe daqui, não?
– Isso não é da
sua conta. Dê o fora.
Ao dizer isso seus
capangas tiraram canivetes e me cercaram.
– Quer que eu bata
em seus guarda-costas antes de me responder?
Eles me olharam
com raiva e partiram pra cima de mim. O primeiro quebrou sua faca em meu peito
impenetrável; dei um soco que quebrou seu nariz. No segundo eu dei uma
giratória no rosto fazendo-o cambalear. O terceiro tentou contra meu rosto, mas
eu desviei deslocando seu ombro com um soco e joguei-o contra o quarto, com um
chute, que caiu com ele. O quinto tentou uma sequência de golpes que foram
perfeitamente defendidas inclusive uma bola de energia elétrica que parou na
luva direita; com a mão esquerda eu soltei um poder de propulsão que o fez
atingir o quarto que tinha acabado de se levantar, mas foi ao chão de novo. O
segundo criou um tremor no chão me jogando contra um Gol às minhas costas, e
antes que seu canivete me acertasse eu pulei pro lado, girei e larguei outra
propulsão só que com as duas mãos; ele voou até a parede do lado oposto da rua.
Quando eu me virei
pro pivete ele disparou contra mim. Por sorte e reflexo eu criei um campo
magnético que parou as balas a centímetros de mim.
– Se você não
quiser que essas balas voltem é melhor me responder.
Ele analisou a
situação então abaixou o revolver.
– O.k.
Ao soltar as balas
que caíram no chão me virei pro garoto que olhava aquilo tudo meio atônito:
– Pode ir. Ele não
vai te pedir mais nada.
– Ele não estava.
– disse o garoto. – Era um código de reconhecimento.
– Como é?
– Ele estava
fazendo uma pesquisa pra mim, então eu precisava saber se era ele realmente. A
propósito, qual é o resto da senha?
– É pro buzu.
“Que ridículo”
pensei.
– Você não me
respondeu: o que você estava fazendo na Rua Bela Vista do Bonfim no domingo à
noite?
– Já disse que
isso não é da sua conta.
– Suponho que você
tenha mais capangas pra eu bater não é?
– Senhores, por
favor. Quem é você?
– Eu sou Eku.
– Você é herói? –
perguntou o pivete alisando o anel de pedra vermelha.
– Isso importa?
– Na situação que
nos encontramos sim. Eu não gosto de heróis. – eu nada respondi, apesar da
minha impaciência. – eu estava averiguando aquele atentado.
– Por quê?
– Os culpados
podem ser os mesmos que mataram meu líder achando que acabaria com o grupo: Os
Templários.
– O que sabe sobre
eles?
– É pra isso que
ele está aqui. – apontou pro cara do Kennedy.
– Tem um lugar em
que podemos conversar que não seja na rua?
– Vamos pro nosso
QG.
– E vai levá-lo?
– Ele não deve ser
tão bom assim com quinze quanto foi com cinco.
“Eu não duvidaria”
pensei.
Estava matando
dois coelhos com uma cajadada só. Testei a roupa e vou descobrir sobre o grupo
que tentou matar Maçã.
O tal QG do pivete
que se chamava Muriel era um porão sem portas. A passagem se fazia por paredes
movediças.
– E então Feijão?
– perguntou ele pro estudante.
– O grupo tem
divisões no mundo todo, mas surgiu aqui em Salvador. Pelos ataques eu tracei
uma espécie de rota e, devido às minhas aulas de PEI[2], eu descobri um desenho: uma cruz.
– Não é muito
original não é? – disse.
– É aí que ta. –
disse Feijão. – assim como a barba de Deus e o tridente do Diabo são imagens
distorcidas de outras religiões extintas, a cruz era um símbolo de uma seita: a
dos Elementais. Cada lado simbolizava um elemento da natureza: água, fogo, ar e
terra dispostos em pontas perfeitamente equidistantes.
– Isso não é só
uma coincidência é? – perguntou Muriel.
– Não. Os líderes
dos novos Templários têm quatro objetos que representam um elemento cada. O do
ar é um broche, o da terra um bracelete, o do fogo uma corrente e o da água é
um anel.
Instintivamente eu
olhei para Muriel e vi sua expressão disfarçada de interesse.
– Então temos que
encontrar esses quatro e acabar com os nossos problemas.
– Não é tão
simples. Ninguém sabe de quem parte as ordens. Ninguém conhece nenhum dos
Templários. Eles são furtivos, vivem nas sombras. É impossível achá-los.
– Um buraco negro
suga até a luz se tornando assim invisíveis, mas mesmo assim eles podem ser
encontrados. Então não me diga que não podemos achar esses caras.
Fiquei
impressionado por ele saber de buracos negros, mas nada comentei a respeito.
– Ele tem razão.
Deve haver alguma maneira de encontrá-los.
O garoto coçou a
testa antes de dizer.
– Tá! Tá bom. Eu
vou achá-los pra vocês.
Após trocarmos
contatos eu fui pra casa.
– E aí? –
perguntou meu irmão.
– Os ligamentos de
aço da roupa funcionaram bem, as pilhas também. Acho que dá pro gasto.
– Você só testou
isso.
– Relaxe. Ela vai
me servir.
E serviu bem. Não
levou dois dias para eu ver com a visão de raios-X dos óculos mostrarem Gabby
nuns amassos com Guilhotina.
“Bingo”. No dia
seguinte Max tinha entregado a prova, que eu dei a ele, para Lacerda que por
sua vez contou para Dark. A ordem dele foi bem simples:
– Degole ele.
– O… que?
– Agora! E deixe
que da galinha da Gabby eu cuido.
É verdade que os
planos fugiram um pouco do que eu queria, mas isso era facilmente contornável:
– Que dilema não?
– Quem é você? –
perguntou ao ver Eku em cima de um muro nas escadas que davam para sua rua.
– Eu me chamo Eku.
E sei bem pelo quê você está passando. Seu líder mandou você matar seu colega
enquanto ele vai fazer sabe-se lá o que com a mulher que você ama não é?
– Como sabe disso?
– Não importa. O
que importa é que eu posso ajudá-lo. Posso proteger seu amor enquanto você se
livra de Guilhotina.
– Isso não me
ajuda muito.
– Dê isso pra ele.
– joguei para Lacerda um frasco com um líquido viscoso que consegui com minha
tia enfermeira.
– O que é isso?
– Uma passagem
para o Purgatório. Melhor que o Inferno e sem a cabeça, eu acho.
– Por que devo
confiar em você?
– Porque te ajudar
me ajuda. E a um amigo meu. Agora vá; livre-se daquele encosto.
Como prometido, naquele
dia mesmo eu fui salvar a garota que tantas vezes salvou minha vida, mesmo que
sem saber.
Dark havia levado
ela pro Dique do Tororó, e quando eles estavam em um lado deserto, ele mostrou
suas garras:
– Sua puta, como
você foi capaz de me trair com aquele sacana do Guilhotina?! – ele havia
suspendido ela pelo pescoço.
– Largue ela Dark!
– ordenei atrás dele.
– Se eu fosse você
ficaria de fora disso.
– Prefere bater em
uma mulher do que em um homem?
Ele largou o
pescoço da garota já roxa e se virou pra mim.
– Eu não bato em
homem. Eu mato.
Rapidamente ele se
jogou contra mim como uma avalanche. Eu tentei voar, mas ele puxou meus pés e
me socou quando eu voltei ao chão me jogando contra um ônibus que passava na
hora quase derrubando-o. O ônibus parou para ele me dar outro soco que me fez
atravessar o veículo. Quando eu olhei pra cima, do chão, vi um pedregulho
branco caindo em cima de mim. Ele fez um buraco no chão. Eu me virei e soltei
uma propulsão que ele parou com uma mão e com a outra bateu no chão criando um
tremor que me derrubou. Quando eu estava de volta ao chão ele juntou os punhos
e desceu com toda força ao asfalto que se despedaçou. Eu tinha desviado, mas
fui lançado no ar pelo impacto e lá me tornei invisível e flutuei. Juntei as
mãos e criei um globo de energia e lancei contra ele, porém o sacana devolveu
com um murro. Eu fui parar em outro ônibus que parou junto com outros carros.
Enquanto eu levantava no corredor do ônibus cheio do vidro do para-brisa que
acabara de atravessar, ele arrancava a porta dianteira do buzu e se dirigia até
mim. Pensando rápido eu disse:
– Levantem os pés!
– e ao fazerem isso desci uma descarga elétrica por toda a parte metálica do
ônibus eletrocutando o cara.
Minha roupa ficou
descarregada, mas ele veio à lona.
– Alguém se
machucou?
Após as negativas
do pessoal eu fui até Gabby.
– Você está bem?
– To. E você? –
confirmei com a cabeça. – Eu não sei no que deu nele.
– Ele descobriu
você e Guilhotina. – falei com um pesar na voz, pois quase ela morreu por minha
causa. – Deve deixá-lo.
– Deu pra perceber
essa necessidade.
Eu voltei pra
casa, satisfeito: meu plano tinha dado certo e no dia seguinte eu ia saber o
tal misterioso segredo de Quatro-Olhos. Eu já tava na entrada da rua quando eu
vi Nêm voando porta afora. De dentro da casa saiu um homem vestido com um
hábito branco com capuz e apontando uma arma para a mulher deitada no chão.
– Chegou seu fim
cafetina.
Eu corri para
ajudá-la, no entanto uma labareda de fogo saiu da porta. Eu sabia que era Maçã.
A roupa do homem não queimou e pra piorar ele se virou para a moça, mas ai eu
cheguei a tempo de bater em seu braço derrubando a arma e em seu rosto. Ele deu
uma giratória em meu peito e eu bati no poste. Maçã partiu pra cima dele e ele
desviou chutando sua barriga. A roupa desativada estava na mochila, mas eu fui
pra cima dele do mesmo jeito, contudo, o homem estendeu a mão e me paralisou.
Era como se cada fluido em meu corpo estivesse sob seu controle. Com a outra
mão ele criou uma corrente de gelo envolta de Maçã e a levou segurando pela
haste. Só quando eu o perdi de vista que eu tive controle do meu corpo.
– Nêm, você está
bem? – não fui eu que perguntei e sim Poteta que apareceu do nada como se
tivesse pressentido.
– Eles levaram meu
ganha pão! – falou chorosa.
É ela estava bem.
No dia seguinte eu
fui falar com Vandinho, mas o desgraçado do Quatro-Olhos o levou para uma de
suas conversas secretas. Mas eu aprendi a ser paciente e sabia que de hoje não
passava.
– Oi. – era Gabby.
– Oi.
– Eu queria lhe
agradecer por ontem. Eu me esqueci de fazer isso de tão chocada que eu estava.
Chocado ficou eu
quando ela me veio dizer isso.
– Me desculpe,
mas… do quê que você ta falando?
– Qual é? Eu sou
uma bruxa e sei que era você naquele disfarce; – ela se aproximou e falou
baixo: – Sr. Eku. Você chegou na hora certa. Eu nem sei como te agradecer.
– Você pode fazer
duas coisas: primeiro não se meta mais com trios perigosos. Segundo: cuidado
com fetiches; eles podem te matar.
– Ta registrado. –
disse piscando um olho.
O intervalo já
tinha acabado e Quatro-Olhos ainda não tinha se desgrudado de Vandinho. Parecia
que ele tava adivinhando, mas por sorte, Sarinha, a garota de que Vandinho
gostava chegou pra falar com ele, então Quatro-Olhos se afastou. Só precisava
agora ficar esperando, o que não ocorreu por muito tempo, pois a terceira aula
já ia começar. Aproveitei que era de química (o professor só ia entregar as
provas feitas em dupla e Mile iria pegar a minha e a dela) para chamar Vandinho
para um lugar reservado.
– Promessa é
dívida Vandinho! Você ta me devendo.
– Ainda nem
acredito que você conseguiu mesmo. Só Lacerda veio hoje.
– É eu sei, mas
não enrola; fala logo.
– Ta bem. O que
você quer saber?
– Primeiro por que
Quatro-Olhos não quis ficar nem com Fatinha nem com Gabby.
– Fatinha por que
era de outra religião.
– Mas isso não é
problema. Meu tio é mulçumano e a mulher dele da mesma religião que Quatro-Olhos.
– Mas não da mesma
cabeça. Quatro-Olhos acha que sincretismo religioso só rola com religiões
falsas. E quanto a Gabby, o caso era mais grave porque ela é bruxa; segundo
ele, filha do demo.
– To ligado. –
pelo visto Quatro-Olhos era muito preconceituoso. – Mas o que tem Lis de
errado? Até onde eu saiba, ela não tem religião fixa, nem é bruxa, nem vampira,
nem nada disso.
– Nesse caso o
problema não é ela, é ele.
Fiz um esforço
para não cortar a narrativa de Vandinho, porém sua pausa me inclinou a fazê-lo:
– O quê que tem
ele? Ele não gosta dela?
– Até gosta, mas o
caso é que ele ta apaixonado por outra mulher.
– Sério?
– To te dizendo.
– Mas se ele não
gosta de Lis, por que ele sempre vem pra cima de mim com quatro pedras na mão?
– Isso não tem
nada a ver com ela e sim comigo.
– Com você? – eu
já tava achando aquela história meio estranha.
– Pelo que eu pude
perceber ele ta tentando me converter, mas ele acha que você atrapalha o
trabalho dele com suas ideias liberais demais, como diz ele.
– As ideias dele
são atrasadas e eu que sou liberal? – eu ri de desgosto. – Quatro-Olhos só pode
ta ficando maluco; até porque eu nem tenho mais chance de conversar assim com
você e mesmo assim ele me dá patada.
– Ele ta
descontando a raiva que sente de si mesmo.
– Peraí Vandinho.
Agora eu não to entendo nada. Você disse que ele me trata mal por eu te
“desviar” ou por sentir raiva dele próprio?
– Os dois.
– Isso é um
absurdo! O que eu tenho a ver com os problemas dele?!
– Você ficou com a
namorada dele enquanto ele não pode, pois acha errado.
– Mas eu não peguei
Lis!
– Eu não to
falando de Lis. – ao dizer isso Vandinho me fez pensar.
Por já ter ouvido
um comentário parecido de eu ter pegado a namorada de Quatro-Olhos feito por
Nokia, eu não lembrei que Quatro-Olhos não gosta de Lis e sim de outra garota.
– Peraí Vandinho.
Eu nem sei quem é essa garota. Ela estuda aqui?
– Não. Ela também
mora na liberdade. Seu nome é Maçã.
Por alguns
segundos eu fiquei na dúvida se ele se referia a mesma Maçã que eu conhecia ou
se era uma homônima, o que era meio difícil e coincidente de mais.
– Como é essa Maçã?
– Eu não sei, mas
o que Quatro-Olhos me disse é que ela é prostituta.
Essa não! Um
puritano como Quatro-Olhos tava afim de uma prostituta e achava que eu tinha ficado
com ela.
Invejoso!
– Mas eu nunca
tive nada com ela. A gente só se falou umas duas vezes. – e poderão ser as
últimas se eu não encontrá-la a tempo.
– Ele disse que te
viu sair de um beco com ela num dia desses aí.
– Ela tava sendo
estuprada. Eu só a salvei. Não houve nada entre a gente.
– Isso você
explica pra ele. Mas alguma dúvida?
– Como foi que
eles se conheceram?
Pela cara de
Vandinho essa era a pergunta que ele temia ouvir…
– Bananinha, eu
sei que a gente fez um acordo, mas eu não devo dizer a resposta dessa pergunta.
O que só aguçou
minha curiosidade mais ainda.
– Trato é trato Vandinho.
– Eu fiz uma
promessa para Quatro-Olhos…
– E para mim
também. Vamos! Nem se eu quisesse eu iria contar que sei alguma coisa pra Quatro-Olhos.
– Sabe. Eu preferia
não ter feito acordo nenhum porque eu sabia que teria que contar alguma coisa
que não podia.
– Vandinho se não
me contar, dizer a Quatro-Olhos o que eu sei seria a menor coisa que eu faria
contra você.
– Acha que eu
tenho medo de você?
– Os DeGoLa também
não tinham. Sobretudo, Dark que me esmurrou até eu quase virar patê. Anda logo,
conta de uma vez.
– O.k. – ele deu
um longo suspiro até eu quase interpelá-lo de novo. – Ele a conheceu
investigando o bordel em que ela trabalha.
– Por que Quatro-Olhos
iria investigar um bordel?
– Pra saber seus
horários… – eu o olhei com uma expressão atônita. – e depois atacá-lo com um
míssil.
– O quê?!
– Quatro-Olhos é
líder de uma organização chamada de Templários. Ele iria matar todas as
prostitutas do brega, mas por se apaixonar por ela, ele a poupou. E hoje ele me
disse que levou ela para uma purificação. Para ela renascer em…
Eu não pude ouvir
mais nada. Todos os meus problemas eram um só e a única solução era acabar com
o cara que me odiava, mas que apesar de tudo eu ainda o considerava um amigo.
Eu tinha que fazê-lo parar. Eu tinha que resgatar Maçã.
Corri até minha
sala, mas foi tarde demais: Muriel e sua gangue já estavam dentro do colégio se
dirigindo a ela.
– O que faz aqui?
– Acredite. Se eu
soubesse que você estudava aqui eu nem entrava.
– Muriel, eu sou o
Eku. O que descobriu?
– Que terrível
surpresa! Então, com medo de me enfrentar você criou um heroizinho pra ter mais
coragem? – ele continuou andando.
Eu parei na frente
dele no primeiro degrau das escadas que davam ao primeiro andar do pavilhão A.
– O que veio fazer
aqui?
Ele sorriu
desdenhosamente.
– Feijão encontrou
um dos líderes. Parece que ele deu um vacilo e se expôs, mas que o necessário,
então eu tô aqui.
– Deve deixá-lo
comigo.
– Só porque você
derrubou cinco de meus colegas acha que é tão forte assim?
– Eu o conheço,
posso dissuadi-lo.
– Eu não vou
esperar que ele faça seu sangue ferver e depois se mande como uma fumaça de
vapor. Eu vou atacá-lo agora.
– Eu não vou
deixar. – disse firme sem sair do lugar.
Ele riu, depois
deu uma giratória, porém eu me abaixei e dei um chute em seu estomago fazendo-o
recuar. Ao fazer isso ele deixou espaço para uma garota de soqueira atingir o
ar várias vezes até eu acertar sua mão tirando seu objeto de ferro e depois lhe
dar uma joelhada no rosto.
– Pare essa. –
disse Muriel quando a garota caiu no chão deixando sua mira livre para me
acertar com uma bala de vidro.
Um filete de
sangue jorrou do meu peito direito caindo no chão dois segundos antes de mim.
Muriel e sua equipe passaram por mim enquanto eu sangrava e ouvia o grito de
Gabby:
– Bananinha! Você
está bem? – ela não estava sozinha. Com ela vinha Lacerda que me virou de
costas.
A dor era tanta que eu mal pude ver a garota retirar
os fragmentos de vidro com a varinha curando meu peito em seguida.
– Ei cara, você ta
legal? – perguntou Lacerda.
– A-acho que sim.
– disse ainda um pouco atordoado.
Do andar superior
eu ouvia o som de guerra.
– Eu preciso
detê-los.
– Não! – disse
Gabby veemente. – Eles são muitos e você está sem sua roupa.
– Que roupa? –
perguntou Lacerda desconfiando de algo.
– Eles não podem
matar Quatro-Olhos. Eu tenho que detê-los.
– O que eles
querem com Quatro-Olhos? – perguntou ela.
– Não posso dizer,
mas ele corre perigo. – os dois se entreolharam.
– Tome conta dele,
Gabby. Eu vou ajudar Quatro-Olhos. – ao dizer isso um capanga foi arremessado
do corredor do andar superior por uma breve cachoeira.
Eu fui atrás dele.
– Bananinha, não!
– Eu não posso
ficar aqui sem fazer nada!
– Você acabou de
levar um tiro e estar sem sua roupa. Como pretende ajudar?
Ela tinha razão.
Entre um tiro, uma onda e uma rajada de poder eu liguei para meu pai.
– Meu pai? Sou eu,
o senhor já consertou a roupa? Posso passar aí pra buscar? O.k. To passando aí
agora. Tchau.
– Aonde você vai?
– Vou pegar a
roupa na mão de meu pai.
– Quer uma carona?
– ela apontou a varinha pro corredor e segundos depois uma vassoura veio
voando. – Senta aí. – pediu ela subindo no objeto que planava.
– Tudo bem.
Eu passei até
rápido na casa de meu pai, mas quando eu voltei vi dez capangas no chão e
Lacerda dentro um terno com tecnologia parecida do meu traje rasgado sentado
encostado na parede.
– Lacerda! – Gabby
correu até ele. – Você está bem?
– Tô, mas eles
levaram Quatro-Olhos. – o corredor estava quase todo destruído, mas estava se
refazendo automaticamente.
– E você sabe pra
onde?
– Coloquei um… ai…
radar neles. Aqui está. – ele me passou um discman que na verdade era um tipo
de GPS apontando um sinal.
– Cuide dele Gabby.
– e antes que ela me dissesse qualquer coisa eu já tinha ido embora.
O sinal indicava
outro QG de uma barreira em brotas. Como o bairro era grande imaginei que a
gangue também fosse, mas eu não poderia deixar que matassem Quatro-Olhos. Mesmo
que ele tivesse matado muitas pessoas, ele deveria ser julgado e, além disso,
tinha que dar o paradeiro de Maçã.
O QG era embaixo
de uma garagem e bem organizado. Eu podia ficar invisível, mas não podia
atravessar paredes, então tinha que fazer do jeito difícil: derrubar o teto.
Quando parte do
teto desabou, eu vi várias rajadas de cores e potências diferentes indo para
todos os lugares. Achei, então, que essa era uma boa distração, mais não uma
boa entrada. Em seguida localizei a porta. Por sorte ela não era dimensional
como a de algumas gangues em bairros cem por cento nobres.
Ao entrar eu
reconheci quatro rostos: o de Muriel, a de sua vice-líder (que tinha o nariz
quebrado), a de Quatro-Olhos preso em uma corrente eletrificada e a de Mudinho,
filho da minha melhor professora e da coordenadora do Kennedy, onde eu estudei.
Meu primeiro pensamento foi soltar Quatro-Olhos,
mas pensei melhor, porque ao mesmo tempo em que ele podia me ajudar, ele iria
fugir com seu magnífico poder de mago das águas.
No entanto, me
surpreendi ao não ver o anel em seu dedo tão gritante, mas que eu nunca tinha
prestado a devida atenção nele. O anel estava com Muriel, e enfrentá-lo com a
ajuda de mais de trinta capangas não seria nada legal.
Disparei um poder
de propulsão que agora estava mais forte devido aos ajustes de meu pai que
jogou Muriel contra uma pilastra. Quando um ruivo tinha conseguido me enxergar
eu já estava atrás de Mudinho com uma lâmina que saía da parte inferior do meu
casaco para o pescoço dele.
– Abaixem as
armas! – gritei como se isso me deixasse mais seguro.
Não precisei pedir
de novo para que todos largassem o canivete, mas não ouvi nenhuma soqueira
caindo no chão. Isso era um mau sinal.
– Mudinho, sou eu:
D.
“Eu deveria saber
quem é por uma letra?” Me disse em telepatia.
– Eu conheço sua
mã… – antes que eu completasse a frase um soco estralou uma costela minha.
Eu caí no chão e
um braço envolveu meu pescoço.
“O que você disse?”
ele tinha ouvido… isso era um bom sinal, mas antes que eu pudesse dizer mais
alguma coisa, eu ouvi um som de tiro.
Meus olhos
atônitos vagaram de Muriel com a arma em punho levantado e o braço de Mudinho
abrindo a mão e deixando cair uma bala.
“Sem tiros por
enquanto.” Pensou para todos.
O filho de Rosinha
era bom. Pegou a bala de costas para o atirador e sem olhar. Suponho.
“Você disse que
conhece minha mãe?”
– Sim. Rosa Tereza
Saback Leite.
“Tire a máscara
dele.”
Em menos de dez
segundos eu estava sem boné, óculos e bandana. Mas também fui solto:
“Ah! Então é você!
Pode soltá-lo.”
Eu vi que Muriel
pretendia argumentar, mas se algo saísse contra seus planos ele tinha uma
segunda opção entre os dedos.
“O que faz aqui e
por que invadiu meu Quartel General?”
– Por que vocês
não podem matar aquele homem. Ele sabe o paradeiro da última prostituta que
pegou.
“Isso atrasa um
pouco as coisas.”
– Não é certo
matá-lo. Ele deve ser julgado.
“Você parece minha
mãe falando.”
– Deveria ouvir
ela de vez em quando.
“Aquele homem
matou mais de quarenta pessoas junto com seu bando de fanáticos e quer que eu o
deixe vivo?”
– Ele é amigo do
prisioneiro. – disse Muriel. – tentou me impedir no colégio dos dois e agora
tentou fazer o mesmo aqui. Não dê ouvido a ele.
“Isso é verdade?”
perguntou antes que eu também pudesse acusar o pivete.
– Não é por isso
que o quero vivo. É errado.
“Ele é perigoso
demais pra continuar vivo.”
– Me custou doze
homens. – ele devia ta falando de outros dois que foram arremessados para longe
no CEAT.
“Tenho que matar
pelo menos os quatro principais.”
– E o que vão
fazer com os amuletos?
“Enterrá-los
junto.”
– Muriel concorda
com isso? – perguntei olhando o cara. – Ele já se apossou do anel de Quatro-Olhos
não foi?
Automaticamente
todos se viraram pra ele, exceto seus comparsas.
– Um pequeno
pagamento pelo que ele me fez passar.
– Mas se ele já
tem o anel, pra quê matá-lo.
“Você não disse
que ficou com o anel do prisioneiro.” pensou Mudinho.
– Um pequeno
detalhe. Isso importa muito? – perguntou com a cara mais cínica e deslavada.
“Não vamos ficar
com nada. Os quatro devem ser enterrados com seus amuletos.”
– Discordo! Eu o
capturei, eu decido o que fazer com ele.
“Você está no meu
QG e em menor número. Eu decido.”
Pelo visto o
impasse não ia ficar só na conversa, então eu teria que saber o que fazer assim
que os poderes fossem disparados.
– Você acha mesmo
que número vai contar com isso?! – ele mostrou o anel de pedra redonda azul
engastada num aro de prata.
“Você é muito
confiante Muriel, mas você vai pagar por isso.”
– É o que veremos.
Com o poder do
anel, Muriel controlou o sangue de Mudinho e o jogou contra seu vice-líder. Eu
saquei duas armas de balas elétricas que meu pai havia colocado na roupa e
disparei as duas ao mesmo tempo. A primeira parou em um escudo de gelo na
frente de Muriel e a segunda que ia até a corrente que prendia o prisioneiro de
Mudinho foi atingida pela bala do mesmo.
– Droga! – tive
que correr para a prisão de Quatro-Olhos enquanto a barreira de Mudinho e a que
sobrou de Muriel se enfrentavam mortalmente.
Ao chegar à parede
onde Quatro-Olhos era preso por correntes eletrificadas eu recebi um chute nas
costas que me jogou pra lá, mas por sorte minha roupa me protegia da
eletricidade. Ao virar, vi que era a vice-líder de Muriel.
– Ainda não
desistiu?
– Tenho truques
novos.
Com a mão que
usava a soqueira ela puxou a energia elétrica que me envolveu como uma corrente
me prendendo para que ela socasse meu rosto até eu enganá-la ficando invisível.
Essa pausa permitiu que meu traje soltasse uma espécie de carga igual anulando
a energia.
– Agora é minha
vez! – juntei as mãos e soltei propulsão com bastante força fazendo ela ir
parar no outro lado do recinto.
Puxei novamente as
duas armas, não obstante, dois capangas de Mudinho se prostraram na minha
frente. Pelo visto o fato de eu ter derrotado a vice-líder de Muriel não fez
muita diferença pra eles.
Apontei pros dois,
mas um se teletransportou e o outro chutou minha mão antes de eu puxar o
gatilho. Apontei para o primeiro, mas o segundo reapareceu chutando minha outra
mão e deixando a frente livre para um chute no peito do primeiro. O segundo reapareceu
atrás de mim me segurando, mas antes que o primeiro me atingisse com um segundo
soco, meu traje liberou energia de novo eletrocutando o que estava às minhas
costas. Eu defendi o golpe e começamos a trocar murros e chutes até que,
impaciente com aquele duelo besta, soltei uma propulsão contra o cara fazendo-o
voar até as correntes eletrificadas que prendiam Quatro-Olhos dando um choque
nele.
– Se alguma coisa
me atrapalhar de novo… – um capanga de Mudinho foi levado por uma onda até
centímetros de onde eu estava batendo violentamente na parede.
Eu o ignorei e
cortei as correntes com as lâminas que saiam de debaixo de meu punho.
– Quatro-Olhos?
Você está bem?
– Tem que me
devolver o anel. – disse com a voz fraca.
– Não Quatro-Olhos!
Tem de me dizer onde Maçã tá.
– Sem meu anel não
poderei ajudar.
– Eu não vou te
dar o anel Quatro-Olhos, e se Maçã morrer eu juro que te mato.
Os poderes
começaram a cessar à medida que tiros começaram a soar. E só de uma arma; a de
Mudinho.
– Vamos Quatro-Olhos!
Não temos muito tempo!
– Não pode ficar
com os dois ao mesmo tempo.
– Você está
sendo egoísta. Você nunca quis ficar com ela, aceitá-la do jeito que ela era e
ainda quer me afastar dela. Como pode ser assim tão mesquinho? – agora só se
ouvia as balas e eu sabia que não iam durar por muito tempo mesmo que a arma
fosse recarregada.
– Eu realmente a
amo, porque sou eu que quero vê-la melhor. Que quero que ela mude e saia dessa
vida.
– Não Quatro-Olhos.
Você quer que ela seja sua representação perfeita de mulher e não sabe que
todos nós temos nossas escolhas e que devem ser respeitadas.
– A única coisa
que você quer, Bananinha, é alguém pra transar e que seja fácil.
Aquilo me atingiu
ferozmente. Eu nunca tinha pensado em sexo quando eu estive com Maçã. Não que
ela não fosse atraente, mas ela era uma pessoa e não um objeto.
Os tiros cessaram.
– E então Sr. Eku?
Como quer que eu o mate? Prefere as balas ou o poder?
Eu não respondi
por causa do que Quatro-Olhos tinha me dito. Mesmo como prostituta eu a tinha
visto muito mais como pessoa do que ele que queria “melhorá-la” como se ela
fosse um de seus carros modernos que nunca saiam do papel.
– Vou começar com
as balas então.
Quando ele atirou,
eu virei e rebati o projétil lançando uma propulsão contra ele, no entanto o
cara criou uma parede de gelo lhe protegendo e fazendo em seguida ela deslizar
contra mim. Eu pulei pro lado levando Quatro-Olhos comigo, mas querendo que eu
não tivesse conseguido tirar ele do lugar. A parede de gelo derrubou a de
concreto.
Ao cair eu
encontrei minha arma e atirei contra ele, contudo ele se desfez em líquido e
tirou a arma de mim quando a poça se aproximou. De volta ao seu estado, ele me
levantou até o teto, porém antes que eu chegasse lá Quatro-Olhos se atirou
contra ele. Eu caí a tempo de ver Quatro-Olhos socando um rosto de gelo que se
encontrou com sua cara fazendo-o sangrar.
Muriel lançou Quatro-Olhos
longe sem usar seus braços pra fazer isso e antes que eu soltasse outra
propulsão eu era envolvido por um globo de água que perdia temperatura
rapidamente.
Eu vi Muriel
murmurar algo como:
– Não acredito que
você se envolveu tanto em minha vida por causa de coisas tão banais. Você é um
Carma. Uma praga que deve ser eliminada.
Enquanto a água
começava a congelar eu pensei que nada poderia detê-lo a não ser uma carga
elétrica. A mesma que deve ter parado Quatro-Olhos antes que ele tivesse
derrotado os vinte comparsas de Muriel.
Como se tivesse
pensando na mesma coisa Quatro-Olhos pulou pra cima do pivete de novo, dessa
atravessando-o como se ele fosse uma cachoeira e caiu pegando minha outra arma
e atirando nele. Por sorte, em vez de criar outra proteção de gelo ele se
liquefez e recebeu a descarga. O globo se desfez e eu escorreguei até o pivete
que caia como se estivesse tendo uma convulsão.
– Eletricidade.
Coisa do mundo moderno que fico feliz em lhe apresentar. – disse Quatro-Olhos
parecendo repetir a frase de alguém.
– Bom trabalho Quatro-Olhos.
– ao falar olhei automaticamente para o anel e Quatro-Olhos percebeu.
– Parado ai,
Bananinha. – pediu apontando minha arma contra mim.
– Onde ela está Quatro-Olhos?
– Eu vou salvá-la.
Como eu fiz da última vez. – disse me lembrando do dia em que todas as
prostitutas de Nêm foram mortas menos ela.
– Se você a ama
deve deixá-la da maneira como ela quer. Eu também não gosto da ideia dela ser
prostituta, mas é o que ela escolheu.
– E isso é bem
conveniente pra você não é? – ele se aproximou ainda apontando a arma pra mim.
– Seria se eu
tivesse alguma coisa com ela. Eu juro que nunca toquei nela.
– Eu vi vocês
saindo de um beco.
– Ela estava sendo
estuprada por Muriel. – apontei pro cara à minha frente.
– É errado acusar
alguém que não pode se defender sabia.
– Quatro-Olhos,
essa é a hora de você se redimir. Matar pessoas é tão errado quanto se
prostituir.
– Mas alguém
precisa fazer o trabalho sujo. – eu me virei pra ele mais próximo agora.
– Não faça isso.
– É por causa de
pessoas como você que o mal ainda existe. Que o pecado é permitido. Vocês são
tão maus quanto eles. – e de repente ele preparou a arma para atirar em mim.
Ele não apontava
por precaução e sim pra me matar mesmo.
– Eu lamento
Bananinha, mas é melhor assim.
Então eu não tive
outra escolha a não ser descarregar minha roupa outra vez na poça de água em
que Quatro-Olhos tava, fazendo ele cair no chão inerte e pálido.
– Quatro-Olhos! –
eu fui até ele. O garoto estava cuspindo espuma e seus olhos estavam
esbugalhados. A energia da roupa era forte o suficiente para desacordar um
mamute como Dark, mas era forte demais para um magricela como Quatro-Olhos
resistir. – Tem que me dizer Quatro-Olhos. Onde ela está. – silêncio. – Não
adianta mais nada agora. Você perdeu. Tente aceitar isso. Você não pode mudar
quem não pode ser mudado. Nem todos são como a água que muda de forma
facilmente. Outros são como o fogo que sempre queima pra cima, sempre consome do
mesmo jeito. – eu começara a chorar, não só por Maçã, mas também por Quatro-Olhos.
Eu o tinha atingido e se ele morrer, eu vou ter matado os dois. – Você não pode
mudar isso. É a vida. Ela é assim.
Ele ainda ficou em
silêncio por um tempo.
– Mercado… escravos…
água. – aquilo não era hora para enigmas, mas foi o que ele disse antes de
morrer.
Eu estava fraco
demais pra continuar. Eu matei meu amigo e não fazia ideia de como ajudar Maçã.
Eu não podia continuar, mas tinha. Algo em mim tentava se rebelar; tentava sair
de dentro de mim, mas eu sabia, assim como que ele existia, que não seria bom
se ele saísse.
Tentei botar a
cabeça pra funcionar, encontra uma resposta. Ora, eu era o Eku, a equação que
sempre dá uma solução. Eu tinha que encontrar uma. Os minutos passavam e eu não
via nenhuma perspectiva de vitória. Meu mundo acabara assim como a vida de Quatro-Olhos:
sem deixar nenhum sentido a vista. Uma vez eu me perguntei como era morrer, mas
agora eu via que matar era mil vezes pior.
“D.” era a voz de
Mudinho em minha mente. Pelo visto ele não morrera como eu supus. Ele estava
encharcado e um pouco ferido. “Venha comigo.”
– Eu preciso
salvá-la Mudinho!
“O que ele disse?”
– Mercado…
escravos… água.
“Não faço a mínima
ideia do que seja isso. Mas posso perguntar a meu pai. Ele já deve…”
Então eu percebi.
A mnemônica pra mim ficava perfeita se eu colocasse mais um elemento: pai.
Meu pai uma vez me
disse que os escravos ficavam presos na parte baixa do prédio que inundava com
a maré alta. Era o Mercado Modelo.
– Já sei.
“Sabe o quê?”
– Ele se referia
ao Mercado Modelo.
“É… faz sentido.” pensou
depois de refletir um instante.
– Você tem um
carro? – perguntei sabendo que minha roupa não ia servir pra nada agora. Olhei
também o anel azul no dedo de Muriel. Novamente meu olhar foi acompanhado.
Sem pensar mais
nada Mundinho se virou e foi até o estacionamento:
“Deve ter algum
bem rápido.”
Ao descer as
últimas escadas do Mercado Modelo eu me deparei com dois frades. Isso se eles tivessem
um terço ao invés de armas nas mãos.
– Mestre! – falou
um deles. – Que bom que o senhor está bem! irmão Judá e irmão Saulo estão à sua
procura. Achávamos que o senhor estava morto.
Pelo visto eu
parecia muito com Quatro-Olhos pelo menos no escuro. Para eles não
desconfiarem, enruguei minha pele modificando-a até ficar com a cara de Quatro-Olhos.
Literalmente.
– Ela ainda está
aí? – perguntei disfarçando a voz.
– Sim. – respondeu
o outro visivelmente desconfiado pelo tom de voz.
Eles se afastaram
e eu abri a porta para uma sala bem iluminada e inundada até a metade. Ao
descer as escadas eu diminuir o volume d’água. Era incrível como o poder se
adequava bem a mim.
– Maçã? – chamei
assim que a porta se fechou à minhas costas.
– Braço? – pelo
visto ela me reconheceu.
Ela estava abatida e mais branca do que já era.
Talvez Quatro-Olhos estivesse certo: talvez eu sentisse atração por ela,
principalmente vendo ela naquele vestido branco e transparente por estar
molhado.
Eu me aproximei
dela e de repente ela ergueu a cabeça como se quisesse me beijar. Eu
correspondi, mas não era meu beijo. Aquela coisa queria sair de meu peito mais
uma vez. Ele dizia:
“Possua, possua.”
Eu não podia fazer
aquilo. Me afastei.
Ela olhou sem
entender.
– Vim te salvar. –
ela abriu um sorriso, mas depois fechou quando a porta abriu.
– Que bom tê-lo de
volta irmão Dã. – disse a voz masculina atrás de mim. Eu enruguei a cara de
novo.
– Melhor pra mim
não é? – perguntei me virando e me arrependendo de ter dito aquilo. Se havia
uma coisa que Quatro-Olhos não possuía era senso de humor.
– Mal voltou e já
vai pro serviço? Ela pode esperar. Convoquei uma reunião. Temos que punir quem
fez isso com você.
– Eles já foram
punidos. A propósito, quem te disse que eu estava aqui? Não falei com ninguém a
respeito.
– Verdade. Foi um
de seus guardas que me chamou. Ele tava desconfiado de você. – eu tinha razão
quanto ao outro: ele percebeu. – você treinou muito bem seus homens.
“Bem até demais”
pensei.
– Mas pelo visto
não há com que eu me preocupar não é?
– Não. – disse
tentando ser normal.
Ele continuou me
olhando.
– Algum problema?
– será que ele também estava desconfiado?
– Nenhum. – quando
ele se virou eu também me virei, mas devia ter esperado.
Eu mal fixei meus
olhos de volta em Maçã quando recebi uma fraca bola de fogo nas costas.
Eu me virei
assustado.
– Perdeu seu reflexo,
irmão?
Dessa vez ele
lançou uma bola grande de fogo que eu parei criando uma parede de gelo, mas
essa técnica não estava ficando clichê só pra mim. Ele socou a parede
destruindo-a e com a outra mão me lançou uma labareda. Eu não podia me abaixar
se não o fogo iria atingir Maçã em cheio. Subi uma parede de água que evaporou
depois congelei a água em seus pés. O próximo golpe seria um soco de gelo, mas
ele explodiu me jogando para a outra parede com Maçã, que estava presa por
correntes no meio da sala, nas minhas costas. Nós batemos na parede, no entanto
ela me amorteceu. Confiando na força que ela disse ter eu partir pra cima do
templário trazendo uma onda direto do mar, que passou pelo buraco aumentando-o.
O desgraçado criou uma esfera de fogo como se fosse o sol evaporando toda a
água que tocava na bola incandescente.
Eu estaria
disposto a destruir o local, mas tinha que tirar Maçã dali. Criei, então, um
globo oco de água, coloquei-a dentro e o fiz passar por outro buraco que uma
onda mais forte, sob meu comando acabara de fazer. Sozinho com aquele
guerreiro, eu derrubei a parede e joguei um rio de água nele encobrindo sua
bola de fogo, que foi diminuindo até que apagasse. Preso em minha mão de água
eu desfiz aquele rosto lúgubre de Quatro-Olhos.
– Você é bem
perspicaz. Mas se fosse inteligente não viria me enfrentar em um lugar como
esse. – usei a água que o envolvia para
tirar seu colar do pescoço e jogá-la no fundo do mar, dentro de alguma concha.
– Adeus. – eu congelei toda a área dentro da sala prendendo-o ali dentro até o
pescoço.
– Escreva minhas
palavras garoto. Você não vai escapar ileso disso. Iremos caçar você e sua
amiguinha e você vai se arrepender de ter nascido! Pode escrever!!
Deslizei pelas
ondas ignorando-o até encontra Maçã deitada na praia.
– Você está bem? –
perguntei colocando a mão em sua cabeça erguendo-a.
– E-eu devia ter…
te ouvido.
– Relaxe. Pelo
menos eu te salvei a tempo. – ela sorriu e balançou a cabeça.
– Não… a tempo.
Então eu percebi
que o líquido que descia pelo meu antebraço era sangue e não água. A cabeça
dela sangrava. No final eu de fato tinha matado os dois.
– Maçã…
– Antes… que eu
morra, prometa que vai… usar o meu anel para poder acabar com eles.
– Como pode pensar
em vingança agora que está morrendo? – perguntei já chorando de novo.
– Quantas… quantas
pessoas você quer que eles matem ainda? Mais cem?
Ela tirou o colar
do pescoço com o anel preto e levantou para que eu pudesse pegá-lo e quando o
fiz, sua mão caiu fria e sem vida passando pela minha.
Agora eu tinha
duas mortes, dois anéis e dois inimigos sedentos de vingança. E a única certeza
que tinha é que disso eu nunca vou esquecer. Mesmo que eu tivesse duas vidas.
Mesmo que eu me dividisse em dois: Toda vida é preciosa. Toda vida é
importante. E os dois anéis acima de tudo servem pra me lembrarem disso até que
chegue a minha vez. Até que eu morra.
[1] Em uma barreira, as “crianças” usam canivetes, os vice-líderes uma soqueira e o líder um trinta-e-oito.
Capítulo muito bom, ainda mais com a polêmica dos religiosos hoje em dia e a perseguição de minorias.
ResponderExcluirOs templários podiam perseguir tudo o que considerassem errado, inclusive religiosos que pensam diferente deles, acusando-os de heresia.
Isso aconteceu no passado e não duvide que acontece hoje em dia.
Plot redondo.