As Crônicas de Isabel: Epílogo de Príncipe Callel e Prólogo de Viagem Ao Príncipe Da Alvorada
Tudo parecia confuso. Saí em meio à escuridão atordoado, pisando em poças, me batendo na parede áspera. Era acompanhado de perto por um olhar atento, mas também confuso. Mais à frente, as vozes exaltadas despertavam um imenso ódio em mim. Uma sensação de injustiça que deveria ser reparada.
− Saia da minha frente!
− Vei, se acalme.
− Como podemos nos acalmar depois do
que ela fez?
− Não fiz por mal. Eu tentei lhe
avisar.
Ao chegar à parte clara, reconheci as
vozes. Do lado de onde vim, Papel e Nessa tentavam acertar Testa do outro lado,
protegida pro Nandinho e Dente.
− Vei, ela mesma quis ler. − falou
Nandinho. Olhei pra pessoa citada. Pé estava deitada, pálida (não que ela já
não fosse bastante branca) com a carta chamuscada sobre o peito que, pela
ausência de movimentos e a ira dos Pomponet, só indicava uma coisa.
− Você tem dois segundos para sair da
minha frente, Dente! − ameaçou Nessa.
− Eu não fiz por mal, eu juro!
− Braço, nos ajude aqui. − pediu
Nandinho, mas antes que eu pudesse piscar, Nessa já tinha partido pra cima de
Dente que era o quarto melhor carateca do primeiro dam da cidade e vinte e
cinco vezes mais lento que Nessa que era a número um. Ele foi derrotado em
tempo recorde.
Prevendo o ataque de Papel, Nandinho
se teletransportou levando Testa e o globo congelante que ele havia lançado na
mesma hora.
− Droga! − exclamou Nessa fazendo
ecoar na caverna.
− O que houve? − perguntei ainda
atônito.
− Isso que houve. − disse Nessa já
com a carta em minha cara.
Nela não havia uma mensagem, mas sim
uma instrução: "Larissa Pomponet é transportada em alma para os aposentos
do Príncipe da Alvorada ao ler esta carta."
− Uma folha de Caderno Mortal.
Inteligente.
− Inteligente? − pergunta Papel
incrédulo. − Você sabe o que isso significa?
− Perfeitamente. Só não entendi a
raiva contra Testa.
− Ela que deu a carta pra minha irmã.
− A pedido da própria. Fora que Testa nos alertou sobre esse recado desde o princípio.
− E você não fez nada para evitar que
ela entregasse. Isso também é sua culpa! − vociferou Nessa se posicionando
contra o terceiro melhor carateca.
− Vai bater em Papel também, porque
avisei a ele no primeiro momento possível depois que soube.
− Mas você que a trouxe pra dentro, Braço.
− se defendeu Papel.
− E Pé quis ler a carta. Ninguém a
obrigou a ler.
− Ninguém sabia que isso ia
acontecer.
− Exato. O que me inclui. Não adianta
ficar procurando desesperadamente culpados. Rematar Testa não vai trazer Pé de
volta. Nesse caso só há uma coisa a ser feita.
− Ressuscitar ela não vai funcionar,
se ela está presa nos aposentos do Príncipe da Alvorada em pessoa. − disse
Nessa.
− Não pensei em ressuscitar. − fui
até Dente e o coloquei no ombro. Jean fez o mesmo com Pé. − Vocês terão que ir
buscá-la.
− Vocês? Você não vai conosco?
− Infelizmente tenho uma batalha
pessoal para travar.
− Uma batalha pessoal para travar? −
repetiu Nessa. − Você trouxe uma zumbi que mandou minha irmã para o Inferno e
agora vai simplesmente dar as costas?
− O que queria que eu fizesse?
Matasse Testa como ela mesma queria depois de vê-la ir embora sem nem ao menos
dizer o quanto gostava dela? Você acha que iria perder essa chance de novo?
− Seu sentimento matou minha irmã, Braço.
O mínimo que você poderia fazer era nos ajudar.
− Não, o que matou sua irmã foi a
ideia absurda de Mazda de convocar um exército de mortos. Ideia essa que foi
aprovada por todos, tanto você, quanto a própria Pé. Se quer tanto um culpado,
deveria começar por ele e é atrás dele que vou. Ele sim deve ser enfrentado e
morto.
− Matar Mazda agora não vai trazer Pé
de volta, sua ajuda sim. − falou Papel.
− Mas vocês não pensaram nisso quando
queriam atacar Testa, né?
− Não vamos atrás dela. − prometeu
Nessa.
− Que bom. Também não vou ao Inferno.
Ao menos não antes de levar o encosto junto.
Dizendo isso alcei voou acompanhado
de perto pela ex-soldada que se mantinha em silêncio, mas sempre seguindo meus
passos.
No castelo, todos tomavam champanhe
consternados. Tínhamos vencido a guerra, mas um amigo perdeu a batalha.
− Eu não sei como eles fugiram do meu
controle. − se explicou Constelion, mas pálido que o habitual.
− Ele sabe. − disse jogando Dente no
meio do salão.
− O que ela faz aqui? − interpelou
Minha Prima se assustando a ver a soldada dentro do salão carregando o corpo de
Pé.
− Ela está comigo e não representa
ameaça alguma.
− Onde a coloco? − perguntou ela.
Formiguinha chamou um lacaio para
levar o corpo de Pé para os aposentos em que ela estava. O silêncio se abateu
entre todos até que Bolo se pronunciou:
− Onde estão Papel e Nessa?
− A caminho. − respondi.
− O que aconteceu com Dente?
− Nessa aconteceu. E Nandinho?
− Ele chegou aqui congelado, mas
desfiz o poder. Disse que precisava tirar Testa daqui e foi para a Escada.
− Os Pomponet querem matar Testa, pois
a culpam pela morte de Pé. Ela lhe entregou uma carta com uma folha de Caderno
Mortal que mandou sua alma para os aposentos do Príncipe da Alvorada. −
suspiros de arrepio no salão.
− Mas... como? Eu não dei nenhuma
ordem do tipo.
− Como eu disse, ele sabe como ela
fugiu do seu controle.
Todos olharam para Dente largado no chão
à espera que ele acordasse. Impaciente, Constelion jogou neve na cara dele.
− O quê? Hã? O que foi?
− Queremos saber, Diego, como foi que
um grupo de mortos se rebelou contra a vontade de Constelion, portador do anel.
− perguntou o Jegue. A presença daqueles dois era uma coisa bem incômoda.
− Foi assim: como vocês sabem, havia
uma época em que os anjos andavam entre os homens e acabaram se relacionando
com eles. Desses relacionamentos surgiram os nefilins, também conhecidos como
gigantes. Eles tinham a engenhosidade criativa dos homens e a sabedoria dos
anjos. Assim eles se tornaram uma potência praticamente invencível, mas não
conseguiram sobrepujar por completo os homens. Então o rei dos gigantes,
Golias, mandou Sofia, outra gigante, criar uma arma que pudesse derrotar de vez
as forças humanas. Foi então que ela criou o anel e, fingindo uma aliança com o
rei humano da época, dominou toda a humanidade. Vendo isso, o anjo Samuel deu a
um jovem rapaz outro anel que, ao contrário do criado pela nefilin, dava
livre-arbítrio para quem o usasse e poderia passar esse mesmo livre-arbítrio
para outros do mesmo grupo. Com ele, o jovem criou uma rebelião que terminou
com a morte do rei Golias e a libertação dos homens. Seu nome era Davi. −
terminou Dente mostrando os seus numerosos.
− Então quer dizer que Testa ta com o
anel libertador? − perguntou Lore.
− Talvez.
− Seja como for, não sabemos quais
mortos ainda estão sob meu controle e quais não estão.
− Pra saber, basta perguntar quem é o
mestre do morto. Se ele não responder, é porque não tá sob o controle de
Constelion.
− Não temos como perguntar morto por
morto, temos que encontrar Testa e pegar o anel de volta. − falou Bolo.
− Meu Primo, vá até a casa dela e
pegue o anel, já que você tem mais afinidade com esse tipo de coisa.
− Primeiro que você não me dá ordens.
Segundo que já tenho compromisso. Inclusive, já estou indo.
− Deixe que eu vou falar com ela. −
falou Bolo não querendo me contrariar, depois dos últimos acontecimentos.
− Também vou com você. − falou Dente.
− Mas seria bom alguém segurar Papel e Nessa, porque eles querem a cabeça dela.
− Pode deixar que nós cuidamos...
− Dos Espíritos Nascentes. − disse
Constelion cortando a Princesa. − Deixem que eu cuido de Papel e Nessa.
Dessa forma, o Jegue e as rainhas
ficaram no castelo para reorganizar o reino como acontecera na primeira guerra
em Isabel. Constelion devolveu metade do exército ao seu descanso para um
melhor controle sobre eles. Eu, Jean, Bolo e Dente voltamos para nosso mundo.
Ao passarmos pela escada, encontramos
um cenário surreal. A imensa árvore virou o epicentro de um reflorestamento
total na rua.
− Estamos no lugar certo? − perguntou
Dente.
− O que vocês fizeram com a rua? −
Bolo.
− A Caneta de Mazda se quebrou no
lugar onde está essa árvore e deve ter criado toda essa floresta.
− Será que ela ta ocupando só a rua
ou toda a cidade? − indagou Dente.
− Se fosse toda a cidade, já teriam
posto fogo nela.
− Posso fazer isso agora mesmo. −
disse criando seus tentáculos.
− Se Testa tiver em uma dessas casas,
ela também será destruída. − disse Jean quebrando seu quase voto de silêncio.
Os outros dois se surpreenderam em ouvir a voz dela lembrando-os de sua
presença.
− Além do que, pode haver pessoas
ainda nessas casas. − disse olhando pra minha no pé da escada.
− Dente, você que conhece a história
do anel, vá procurar por Testa. Eu vou olhar as outras casas a procura de
moradores remanescentes. − então ele se virou pra mim esperando que eu dissesse
o que iria fazer.
− Vou ver onde está minha família e
depois vou à casa de Cassandra.
E assim aconteceu.
Dentro de casa, não havia um único móvel que foram
substituídos por todo tipo de planta e flores.
− Tem alguém aqui. − me avisou Jean
apontando para o quarto.
Atravessei a parede na divisa entre
os dois quartos ficando atrás do espadachim encapuzado. Saquei a espada de Bolo
e coloquei nas costas do homem.
− Largue a espada. − mandei. Quando
ele fez, Jean apareceu pela porta o encurralando.
O invasor se virou e, abaixando o
lenço do rosto, revelou seu rosto:
− Júnior?
− Por onde esteve?
− Em Isabel. O que faz aqui desse
jeito? − perguntei apontando para as roupas de desbravador que ele usava.
− Tava esperando por você.
− Onde ta nossa mãe?
− Ela pediu a casa ao inquilino e
estamos morando lá. Eu fiquei para te dar o recado.
− Com uma espada? − Então ele pegou a
arma que, de madeira, se tornou de aço ao seu toque.
− Mal a floresta se alastrou e seres
poderosos desceram do céu com asseclas tão poderosos quanto. Eles montaram base
em algumas casas. Aqui, inclusive é uma dessas bases.
− E quem está no comando?
− Ela se denomina Duquesa.
− Adoro mulheres cuja alcunha são
títulos de nobreza.
− Deixo pra você conhecê-la depois.
Agora tenho que te levar pra casa.
− Não posso. Tenho assuntos
inacabados que devo cuidar.
− Dan, não sabemos até onde essa
floresta pode se expandir. Talvez seja necessário sair da península.
− Não vou a lugar algum antes de
acabar o que tenho que fazer. Tome. − peguei meu celular e, com o poder de Ph,
dividi o aparelho absorvendo seu poder. − Além de servir como contato, onde
vocês forem, eu vou saber.
Meu irmão não pareceu muito
satisfeito com isso, mas ele não tinha escolha. Ao voltarmos pra sala, uma
mulher branquíssima de cabelos extremamente negros e asas de mosquito nas
costas nos aguardava balançando a calda cuja ponta parecia um ferrão.
− Ora, ora. Delivery. − disse ela.
− Saiam daqui. − falou meu irmão se
posicionando em nossa frente.
− Tem certeza que pode cuidar dela?
− Já cuidei de piores. − disse seguro
apontando a espada para ela.
Com isso fomos pro final da casa e
descemos pela casa de baixo. Saindo pela casa do térreo, vimos uma cena
surpreendente, como se aquela floresta já não fosse excepcional o bastante. Do
prédio que ficava no topo de cinco degraus que dava a uma parte mais baixa da
rua, Bolo era arremessado pela varanda do último andar. Velozmente, Jean voou e
pegou o rei no ar.
Duas casas depois um anjo vestindo
armadura dourada jogava uma lança contra a casa de Testa destruindo uma parede. A
lança voltou e ele disparou de novo dessa vez derrubando parte do teto. Quando
a lança retornou, disparei um globo de fogo que se desfez na armadura brilhante
dele.
− Inseto. − disse batendo as asas em
minha direção me jogando contra a escada que formou uma cratera com meu peso.
Indiferente,
ele arremessou a lança de novo, mas quando esta voltava, Jean voou em sua
direção lhe dando uma sequência de socos fazendo a lança passar direto e cair
num matagal no lugar de uma casa que parecia ter sido toda substituída por
vegetação. O anjo ainda tentou se defender fechando as asas sobre a Saiajeans,
mas ela foi veloz e subiu pegando a cabeça dele dando uma cambalhota jogando o
corpo do anjo contra o chão, antes de pedra, agora de terra e grama. Mesmo
assim, o impacto foi grande.
–
Uau! – suspirou Bolo vendo a ex-soldada lutando tão ferozmente naquela blusa
branca apertada e naquela minissaia que não escondia nada com seus movimentos.
Me
aproximei dela enquanto pousava ao lado do anjo derrotado. Ele ainda tentou se
levantar, mas, de joelhos, foi rendido pela ex-soldada que criou um disco de
energia e colocou em seu pescoço.
–
Bolo, vá ver se Dente e Testa estão bem. – pedi. Ele aquiesceu e saiu. – Então
você era o segundo anjo. Dois demônios, dois anjos. O equilíbrio. Qual o seu
nome?
– Daniel.
–
Hierarquia?
– Arcanjo.
– falou com orgulho
–
Por que quer matar Testa?
Silêncio.
–
Responda! – exigiu Jean aproximando mais o disco.
–
Não queria matá-la. Só queria impedir que o garoto tomasse o anel dela.
–
Então foi você que deu o anel do livre-arbítrio para ela.
– O
anel que a garota usava é um ultraje! Só Deus pode dizer para onde deve ir os
mortos. A parti do momento em que ela tirou os mortos do Inferno e do Paraíso,
ela quebrou essa lei que antecede os próprios homens.
–
Ela não está mais com o anel e os mortos serão devolvidos...
–
Não vamos ficar à mercê da vontade de meros mortais! A garota e quem mais a
ajudar deverá pagar a pena.
–
Estou farto de seres divinos dizendo como as coisas devem ser. Você, nem
ninguém de sua gaiola tocará nos meus amigos de novo, ou terão o mesmo destino
que o demônio que nos atacou.
–
Como ousa nos equiparar com aqueles seres?!
–
Não se esqueça que também estou lhe ameaçando. Volte pro seu poleiro e avise
que pouco em breve os mortos serão devolvidos de onde foram tirados e o
controle de seu senhor será reestabelecido.
–
Farei questão de ser seu executor quando a ira de Javé se abater sobre todos
vocês. – disse e cuspiu.
–
Pro seu bem, melhor não nos vermos novamente. – me virei e deixei que Jean
levasse o anjo a nocaute.
Olhei
para os escombros da casa de Testa e não havia ninguém. Do topo do prédio que
Bolo foi jogado, entre as folhagens, havia um rastafári de cabelos azuis que
nos observava com atenção. Da varanda da minha casa, meu irmão segurava sua
espada suja com uma gosma preta que julguei ser o da Duquesa.
“Um
dia será o da Princesa...” pensei. Meneei a cabeça para meu irmão e, com Jean
ao meu lado voei para casa de Cassandra.
Caminhamos a passos rápidos querendo chegar
ao castelo o mais rápido possível. Sabíamos que nem Testa, nem Nandinho, nem
Braço, nem a capitã, nem Cheio de Dente estariam mais lá. Mas no fundo não era
eles que minha busca requeria e sim minha prima.
De repente, quando estávamos no meio do
lago uma aparição me petrificou. O dragão que Braço havia matado estava de
volta, com outra roupagem. Ele pousou bem na nossa frente. Percebi minha prima
bestificada ao meu lado. Então, como se não pudesse me surpreender mais, ele disse:
– Rômulo, o nomeio Mago do gelo nessa era
sob o meu nome. – Como se não tivesse ficado bestificado o suficiente, ele
retirou um anel que eu conhecia bem do dedo, tocou na pedra azulada tornando-a
esbranquiçada como um cubo de gelo e me deu.
Era o mesmo anel de Braço, mas em vez de
água, eu poderia controlar o gelo. Ou ao menos era o que pensei inicialmente.
Sem dizer mais nada, o dragão subiu para um céu cinzento-fumaça.
– Mas... o que foi que aconteceu agora? –
perguntou minha prima abobalhada.
– Também gostaria de saber. – respondi. –
parece que o dragão que nos atacou na nossa primeira batalha, por algum motivo
retirou o anel de Braço e me deu compatível com meu poder.
– Por quê?
– Não me recuperei do choque a tempo de
perguntar.
– Ele era poderoso com esse anel?
– Braço? Sim, muito, por quê?
– Ele veio bem a calhar agora. – ela tinha
toda razão.
Chegamos ao castelo onde Constelion tratou
logo de explicar o ocorrido com os mortos.
– Então, apesar dessa tragédia, peço que
não tente ir atrás deles, nem...
– Não vamos atrás deles. – interrompeu
minha prima impaciente.
– Ah, não? – perguntou Pirulita (Tamires)
aliviada, mas não por muito tempo. – Vamos atrás de minha irmã.
– Como é? – perguntou Constelion elevando
ao quadrado sua palidez.
– Isso mesmo que você ouviu. Vamos até o
palácio do Príncipe da Alvorada pegar Pé de volta.
Todos olharam pra mim pra saber se minha
prima havia ficado louca com a perda da irmã, ou se a loucura era de família.
– Não estamos pedindo que nos acompanhe,
nem mesmo que aprovem. – era de família. – Estamos pedindo que não nos impeça.
– Vocês têm ideia do que querem fazer? –
perguntou Formiguinha estarrecida.
– Temos sim. Só não temos tempo para
discutir. – finalizou minha prima.
– E vocês por acaso sabem ir ao Inferno? –
indagou Lore. – Ou vocês vão cometer suicídio coletivo?
– Nem olhem pra mim que não mandarei vocês
para o Inferno. – se adiantou Constelion.
– Não é preciso. – disse. – O Jegue nos
ajudará a chegar lá.
– Por que acha que posso e vou ajudar vocês?
– Porque você não perderia a chance de me
mandar pro inferno. Literalmente.
O quadrupede pareceu analisar a questão.
– De fato há como chegar lá ainda vivo e até mesmo
como voltar, embora essa última parte não seja tão simples assim.
– Vou pegar nossas coisas. – disse minha
prima saindo rapidamente.
– Estou ouvindo.
– No início, tanto o Paraíso, quanto o Inferno faziam parte dos domínios do céu quando o Príncipe da Alvorada se
rebelou contra seu criador e tomou o Inferno pra si travando a batalha tão
conhecida entre o bem e o mal. Nos tempos de paz, haviam túneis cruzando Isabel
que ligavam os dois reinos. Com a guerra, muitos desses túneis foram destruídos
restando apenas um. Esse túnel é como uma montanha sem topo que liga o céu e o
inferno sendo guarnecido pelas duas entradas. Existem passagens que dão ao
interior do túnel. Como eu disse, descer será fácil e provavelmente nenhum
demônio irá fazer resistência, mas na volta...
– Daremos um jeito. – disse minha prima já
de volta com nossas coisas.
– Vocês não devem ir sozinhos.
– Você não pode vir conosco, pois precisa
manter o exército. – como eu sabia que ninguém mais se ofereceria fui até a
saída.
– Posso não ir com vocês, mas isso não
significa que não darei minha ajuda. – paramos. – Mandarei um grupo de mortos
de volta para o inferno para disfarçar a entrada de vocês. Se ninguém ver que
vocês entrarão, não farão resistência na saída.
– Eles vão saber que eles sequestraram Pé.
– advertiu Pirulita.
– Mas não saberão como entraram nem onde
pretendem sair. – falou Constelion mostrando um belo plano.
– E se entre esses mortos estiverem os que
estão sob o comando de Testa? – perguntou Formiguinha.
– Infelizmente esse é o risco que temos que
correr. – disse ele.
– Vocês já vão numa missão suicida demais
para ainda correr riscos. – Advertiu Lore.
– Mas ainda assim, é nosso melhor plano. –
disse.
– Eles têm razão. – falou Constelion se
sentindo impotente por não poder ajudar mais. Tudo que o Príncipe da Alvorada queria era justamente seu anel e tudo que ele não queria era passá-lo para algum dos
reis empossados de Isabel.
– Eu levarei vocês até a montanha. – falou
o jegue.
“Será que ele vai querer nos empurrar
pessoalmente?” pensei, mas me limitei a segui-lo.
Sob os votos de boa sorte começamos nossa maior e mais perigosa viagem.
Estava eu, bela, com minhas asas rosa-choque
expostas ao sol quando ouço som de destruição vindo da rua.
“Mas o que será agora? Achei que com o
reflorestamento, poderia andar como em Castro Alves e chamar minhas amigas
fadas para tomar o chá das cinco, mas toda hora uma guerra...” pensei indo a
borda da laje tentar ver o que era.
O som parou, mas resolvi olhar mais um pouco para
ter certeza de que tudo estava calmo mesmo. Então eu vi Testa, a mãe e Dente
correndo mais pro fundo da floresta. Espere! Testa? Correndo? O que esses
meninos andaram aprontando dessa vez?
Quando eu estava me preparando pra ir atrás
deles, eu vi Bolo também correndo em direção a eles, mas este parou quando Sued
surgiu do nada na frente dele. Eu e Bolo ficamos salmão. Isso porque ainda não
tinha ouvido o que ouvi:
– Sued?! O quê... como?
– Aqui quem fala não é Sued. Eu apenas usei o
corpo dele para poder falar-lhe pessoalmente.
– E quem é você? – Perguntou com a mão no cabo de
uma espada que parecia recém-forjada.
– Leia meu nome de trás pra frente. – agora eu
fiquei rosa-bebê. E estupefata que Bolo tenha demorado tanto pra entender.
– Mas... – Bolo não sabia o que dizer.
– Não se preocupe. Vim nessa ocasião excepcional
para lhe pedir uma coisa.
– O que, senhor? – perguntou de cabeça baixa.
– Quero que dê meia-volta.
– O quê? Mas... por que, senhor?
– O anel não pode ser tirado de Testa. Pé-De-Pato
fez um grande pecado ao trazer os mortos do Céu e Inferno numa batalha vã em um
mundo que não lhes diz respeito.
– Mas senhor, a invasão alienígena iria destruir
Isabel por completo. Como rei, não poderia fechar os olhos para isso.
– E por esse mesmo motivo que você será não só
poupado, mas como recompensado. Você deve voltar para Isabel e tomar o reino
todo para você.
– Não entendo, senhor.
– Sob a liberdade ocasionada pelo anel dado a
Testa, um morto-vivo irá ceifar a vida de Constelion. Desse modo, o anel poderá
ser usado por qualquer um, incluindo você. Use o anel e faça uma falsa aliança
com as rainhas e domine todos os reis que existem. Seu poder será maior que o
que qualquer outro homem jamais sonhou em ter.
– Mas e quanto a Dente? Ele irá tomar o anel
dela.
– Não a tempo. Faça o que lhe ordeno e será
próspero pelo resto de seus dias. Terás um domínio que irão além das estrelas.
Aquela parecia uma proposta ótima, exceto pelo
fato de que o irmão de Braço iria morrer. Ok que o que os meninos fizeram dessa
vez passava dos limites. Ok também que, pelo que entendi, foi necessário,
afinal, se eles tiveram que ressuscitar todos os mortos na surdina da madrugada
para uma guerra, o tal exército alienígena devia ser mesmo muito numeroso e
forte. Mas matar um inocente? Bastava o Anão de Jardim aparecer pra Constelion
e pedir o exército de volta.
Bolo parecia refletir aquela oferta, mas eu tinha
certeza de que ele jamais...
– Eu aceito. – O quê?! Aquele Bolo solado de
milho de pipoca dissera que aceitava o acordo?
– Muito bem, meu filho. Volte que sua recompensa
o aguarda.
– Sim, senhor.
Por isso que meu pai cansou de se sentar aos pés
daquele velhote tirado a escritor. Eu precisava fazer algo.
Quando os dois sumiram da minha vista, voei
correndo ao encontro do trio.
– Parem! – gritei pousando na frente deles.
– Barbie? – perguntou Testa surpresa, pois nunca
me vira sem glamour.
– Eu mesma. Preciso que você me dê esse anel
agora.
– Como sabe do anel? – Perguntou também admirando
minha beleza feérica.
– Eu acabei de escutar um babado mais atrás sobre
deixar Testa com o anel até matarem Constelion.
– O quê? – perguntaram todos em uníssono.
– Se Testa não me der o anel, um morto-vivo sob a
influência dela irá matar Constelion para que o anel que Braço deu a Pé fique a
disposição de qualquer um. E sabe quem está voltando pra Isabel para pegá-lo?
– Bolo? – perguntou Dente descrente.
– Ele não seria capaz de fazer isso. – Testa.
– Você tá vendo ele em algum lugar aqui impedindo
de você continuar usando o anel?
– Mas ele foi verificar outras pessoas nas casas
como Lilica.
– Não há mais ninguém humano vivo nessa rua. –
denunciei olhando para a mãe de Testa, mas acho que Dente não pegou a deixa.
– Como não? Encontramos Lilica.
Então as duas mulheres olharam para ele.
– Eles nos expulsaram. Eu me recusei. Tomei o meu
castigo. – explicou ela.
– O tempo está passando. – disse ao ver aquela cornucópia
de dentes quando Dente abriu a boca estupefato.
– Como posso saber que está falando a verdade?
Você nunca gostou de mim e já confiei erradamente em um anjo, hoje.
– Nunca tive nada específico contra você. Só não
ia com sua cara o que é absolutamente normal. Mas não inventaria essa mentira
toda por pura birra.
– Não é o suficiente pra mim.
– Filha, acorde. À troco de quê eu ia inventar
isso? O que ganharia?
– Ela tá certa, Testa. Como ela saberia de Bolo,
das Saiajeans, do exército e tudo mais se ela não foi pra Isabel dessa vez?
– Além do que, eu sou fiel a Braço e ainda o
tenho como meu líder. Sei dos sentimentos dele por você e é justamente por isso
que ainda não arranquei esse anel do dedo com meu canivete. – disse balançando
meu adereço de proteção. Rosa, é claro.
– Você teria que passar por cima do meu cadáver
antes de tocar em minha filha. – bradou Lilica o que me fez pensar que bastava
voar por cima dela pra concluir a ameaça.
– Dá logo, Testa. – pediu Dente.
Relutante, a morta-viva tirou o anel e me
entregou.
– Ufa! – suspirei. – Essa foi por pouco.
– Vou voltar pra encontrar Braço então.
– Você se refere àquele Braço? – apontei pra cima
onde ele e uma mulher bem vulgar sobrevoavam a floresta. – Se quiserem, podem
ficar na minha casa e me contar o que vocês fizeram, com detalhes, nessa
segunda ida a Isabel. O convite inclui vocês.
Relutantes, aquiesceram.
– Se todo mundo foi expulso, por que você ainda
tá aqui.
– Eu sou fada e fada vive em floresta. – Acho que
os dentes de Dente tão ocupando espaço onde deveria ficar o cérebro dele.
Chegamos a casa de Cassandra onde me preparei para aquele que
seria o embate final. Após algumas batidas sem resposta, atravessei a porta
segurando Jean pela mão. A cena parecia de guerra: duas paredes destruídas,
parte do teto desabado, buracos no chão e nenhum sinal nem de Cassandra, Helena
ou o encosto.
– Onde eles se meteram?
– Parece que houve um confronto aqui. Energias bastante
poderosas se enfrentaram. – disse Jean mexendo em seus óculos perneta.
– Mazda deve ter enfrentado alguém. Por que não olha seu
ombro no banheiro? Vou tentar descobrir o que aconteceu.
– Meu ombro já está curado. – disse ela mostrando o buraco na
blusa. – Se curou na floresta. Aliás, não foi a única coisa que mud... – de
repente a casa entrou no mais profundo breu, como se fosse jogada num poço sem
fim.
Criei um globo de luz e o gesto foi repetido atrás de Jean
bem em frente a mim. O rosto de Pombinho foi iluminado de forma sinistra assim
como seu olhar. E antes mesmo de disparar seu poder que colidiu com o meu, eu
sabia que aquele não era Pombinho.
– Como escapou? – perguntei disputando poder com o semi-deus.
– Callel, pare! – pediu Jean, mas tentáculos de sombras
envolveram os membros dela trazendo-a para onde estava uma das paredes. Sua
origem era um manto negro que revestia um homem pálido que sorria pra minha
disputa com o príncipe.
– Eu lhe disse para ter cuidado com as sombras que usava em
Isabel. – falou Callel.
Olhei para meu anel das sombras com a pedra translúcida e
entendi quem foi responsável por aquilo.
– Lembrarei disso. Mas como conseguiu fugir daquela cela de
esmeralda? A Princesa? O Jegue? – não desconsiderava nenhuma possibilidade, o
que incluía Jean, apesar de ela tá grudada em mim o tempo todo.
– Meu tio Zorel, senhor das trevas – apontou ele para o homem
que prendia Jean. – A pedra verde me enfraquece, mas a preta é capaz de dividir
minha alma e corpo em bom e ruim. Assim, quando meu tio transformou aquelas
grades de esmeralda em ônix, metade de mim continuou preso em Isabel e metade
veio buscar vingança.
– Imagino que você seja a parte boa.
Em resposta o homem
disparou do ombro uma coroa solar que circundou seu braço e as energias me
atingindo.
– O que faz com esse
fracassado, Jean? – perguntou enquanto eu tentava me recuperar do golpe. – Ele
e seus amigos destruíram seu exército por completo.
– Mas ele me salvou.
Isso por si só já me daria meus serviços a ele como escrava, mas por ser de
minha natureza servir, devo a ele também minha lealdade, já que minha superior
está morta.
– Se una a mim e a
tornarei minha rainha como prometido.
– Lamento Callel, mas
eu também fui dividida em duas e a parte que era apaixonada por você não está
aqui agora.
– Joaquina. – concluí.
Ela confirmou.
– Também sou a parte
má, mas infelizmente essa parte não ama você.
– Então matarei ele
para que sua lealdade passe para mim e você seja minha.
Tentei me levantar, mas
os mesmos tentáculos que prendiam Jean me grudaram no chão. Callel veio com
tudo pra cima de mim, mas atravessei os tentáculos e o chão que ganhou novo buraco.
Puxei o braço dele prendendo-o no chão e subi dando uma joelhada em suas
costelas (se ele tiver alguma), mas o príncipe me atingiu no estômago com uma
cotovelada do braço livre em seguida levantou a mão presa me acertando com
parte do chão. Atordoado, recebi mais um soco, um chute na rótula e uma
joelhada na cara voltando ao chão. Ao meu lado, Jean tentava em vão se soltar
dos laços negros de Zorel.
– Esperei muito por
esse momento. – dizia o príncipe se aproximando de mim. – Foi fácil derrotar
Mazda, mas você que não tem nada de especial? Nem acredito que fui derrotado
por um verme como você.
Lembrando de como venci
o pomposo príncipe tirei o 38 do short, mas Callel desviou e pisou no meu pulso
fazendo eu soltar a arma.
– O mesmo golpe não vai
funcionar comigo duas vezes. – ele me levantou com uma mão e com a outra
preparou um soco. – Adeus... Braço. – disse cuspindo meu nome antes de seu
braço atravessar meu peito.
Segundos depois ele
retirou urrando de dor.
– Mas... o que é isso?
– uma cordinha de prata saia de um poro do braço de Callel e entrava dois
centímetros ao lado como se ele tivesse nascido com uma corrente no antebraço.
Mas não nasceu. Aquela corrente era minha e seu pingente dentro do pulso do
príncipe era feita de esmeralda.
– Achou que eu não
estaria pronto pra você?
O alienígena urrou de
dor. Na distração, Jean criou sua aura libertando-se de Zorel. Aproveitei para
disparar o poder de Mazda contra ele, mas suas vestes-sombras se moldaram de
forma que o poder passou direto. Em resposta um raio negro bem mais poderoso
foi lançado em minha direção, mas Jean criou um disco de energia e usou como
escudo me protegendo.
Ao me virar vi Callel
ajoelhado no chão sem ter como tirar a corrente nem como usar seus poderes.
– Você sempre fez as
escolhas erradas. – apontei minha mão para ele e usei o poder de duplicação,
mas por já ser uma metade, o príncipe rachou em mil pedaços.
– NÃÃÃO! O deus das
sombras aumentou exponencialmente de tamanho e veio para cima de mim e de Jean
como uma onda negra.
Consegui pegar a
corrente a tempo de jogar para Jean que a usou como um amuleto de proteção. A
onda negra desviou dela vindo toda e implacável pra mim. Sem ter como me
defender, tive uma ideia que era absurda, mas foi a melhor ideia da minha vida.
Já que poderia controlar qualquer tipo de arma e um anel com poderes não deixa
de ser uma arma, usei para absorver não só as sombras de Zorel, mas o próprio Zorel.
O deus foi tragado para a pedra translúcida do meu anel tornando-o negro
novamente.
Jean olhou pra mim espantada.
– Pode dizer que sou o
máximo. – falei como se acabasse da dar a maior cagada[1] da
minha vida.
Ela se limitou a
sorrir:
– Como fez isso?
Expliquei o lance das
armas e fui até a sala de trabalho de Cassandra.
– Você é cheio de
truques.
– Espero que um deles
me mostre o que aconteceu aqui. – dei uma olhada na sala e, por intuição, fui
até o espelho. O mesmo espelho que Cassandra me colocou ao me tirar de Mazda.
Dizem que espelhos são
místicos. Vampiros não aparecem neles, bruxas falam com eles e, atrás deles
existe um mundo inteiro igual a este, mas povoado por monstros e governado pela
Vaidade. O que ele diria para mim?
Levantei a mão
tencionando usar o poder de controle das armas.
– Espelho não são
armas. – me alertou Jean o que deveria ser mais que óbvio pra mim.
– Não custa tentar. –
disse sem graça.
– Por que não tentar
modificar o espelho? Que nem Zorel fez com a prisão de Callel em Isabel.
– Não sei como ele fez
isso.
– Você tem um deus no
dedo agora. Pergunte-o. Ou melhor, faça-o lhe dizer.
Ela tinha razão. Olhei
para a pedra dez vezes mais negra do que era antes e, como se conversasse
telepaticamente com ela, fiz o meu pedido. A resposta veio em uma única
palavra: Mácula. Era uma espécie de energia negra que modificava tudo que
tocava corrompendo-a.
Uma lama negra surgiu
na minha mão e eu joguei no espelho. A mancha pareceu passar direto e atingir
meu reflexo do outro lado. Este, por sua vez ganhou vida tentando se
desvencilhar da lama, mas ela era implacável e, em segundos tomou todo o corpo
do meu reflexo. Acredite, foi uma cena bizarra. Tomado por uma gosma preta que
o cobria como um manto, meu eu falou:
– Fale. – sua voz era
como vidro quebrado e não poderia ser mais sinistro.
– Não vejo isso como
uma arma. – falou Jean indiferente.
– Talvez não precise
ser. Quero saber o que houve aqui. – ordenei para o espelho.
Então seu manto negro
tomou conta da imagem que novamente se transformou na sala onde estávamos
novamente, porém ela estava vazia. No entanto ouvimos um som. Peguei a moldura
e fui mexendo de um lado para o outro quando, focando num armário que não
estava na nossa sala, vimos a origem do som. Helena tinha as mãos enterradas em
um boneco de argila do tamanho dela. Ela colocava energia no boneco que, tomou
forma híbrida de um homem com um pássaro. Aos poucos a argila foi tomando
formas definidas e se modificando, mas a imagem não era a minha, como deveria
ser segundo o plano de Cassandra, mas tinha a imagem da própria Helena.
– Ela criou um clone
dela mesma? – indaguei aturdido.
– Helena? – chamou uma
voz que vinha da sala-de-estar-espelho. Era a voz de Cassandra.
A arcana finalizou seu
trabalho e fechou o armário tornando-o invisível.
– Sim? – disse se
virando para a sala. Imediatamente redirecionei o espelho num ângulo que
mostrasse todo o ambiente. De fato era Cassandra com o encosto exatamente como
estavam quando se teletransportaram no Canal do Panamá.
– Onde está o cabelo de
Mazda que usei para fazer a magia de corpo-fechado nele?
– No mesmo lugar. Onde
mais estaria? – respondeu ela.
Cassandra foi até uma
gaveta em uma cômoda no final da sala e retirou o boneco:
– O fio não está aqui.
– Será que você não
retirou para colocar no clone de Dan e esqueceu de devolver?
– Eu nem cheguei a
tirar o fio. Deixei pra quando já estivesse o esboço pronto. Onde está o fio?
– Como vou saber?
– Só nós três sabíamos
desse boneco.
– Dan também sabia.
– Desde que saí do
espelho, eu tenho acompanhado os passos dele. Ele saiu da Lapa e foi direto pra
rua onde o tempo todo estava na minha presença. Não foi ele, assim como nem eu
nem Mazda faria isso.
– Eu também não.
Eles estavam em um
impasse.
– Mais alguém entrou
aqui?
– Não, ninguém. Nem
mesmo tocaram na porta.
– Tem certeza?
– Eu posso cuidar de
você enquanto faço as unhas e tudo isso de olhos fechados. Acha que não saberia
se alguém entrasse aqui?
– E se você estivesse
mentindo? – perguntou Mazda sagaz.
– Desculpe, o que
disse?
– Eu não tiraria meu
próprio fio de cabelo, Cassandra é minha namorada e também não faria isso,
apesar de libertar o encosto.
– Mas já expliquei
isso.
– Eu sei, meu amor.
Danilo não teria tempo pra vir aqui e, mesmo se viesse não poderia pegar o fio
sem sua ajuda. Lapidando essa parte, só sobra você.
– Eu sou o arcano de
Cassandra e jamais lhe faria mal.
– Jamais faria mal a
ela. Você não tem porquê me ajudar, nem estar do meu lado.
– Assim como não tenho
porquê estar contra.
– Talvez tenha... nós é
que não sabemos.
– Você está me acusando
de trair a confiança de minha protegida?
– Protegida essa que
pode ir a qualquer lugar sem sua companhia.
– Nossa ligação pode
superar distâncias.
– O que te dá certa
autonomia, não? Autonomia para questionar certas decisões que ela toma como
namorar um Arquiteto do Universo Humano, se igualando ao seu criador. Juntando
com um pouco de antipatia por mim, você tem mais do que motivos o suficiente
para ter dado fim naquele cabelo.
– Se isso é verdade,
porque apenas tirei o cabelo e não lhe matei de uma só vez.
– Para deixar o
trabalho sujo para outro, mas ninguém é capaz de me destruir.
O argumento (exceto de
que ele era indestrutível), era irrefutável. Helena se limitou a fitá-lo e
Cassandra a fitar ela.
– Por quê? – perguntou
a cigana.
– Por que ele deu a
brilhante ideia de tirar os mortos de seu devido lugar. Se a garota pode
trazê-los para Terra, ela pode realocá-los onde quiser. Imagine pecadores no Céu, santos no Inferno. Some isso ao fato ultrajante dele se igualar a seu
criador como deus. Isso já seria motivo o suficiente.
– Você foi criada para
estar do meu lado como anjo da guarda. Me instruir e proteger e não se envolver
em politicagem celestial.
– Você não entende?
Assim como você, outros humanos também têm arcanos. Como você sabe, os arcanos
têm poderes de acordo com a fé e o poder do protegido. Imagine o arcano de um
deus?! Por pura sorte, ele não possuía nenhum quando achou a Caneta. Mas a
garota tinha sim um arcano. Um arcano que não pôde impedir ela de fazer tal
absurdo e que será refém do Príncipe da Alvorada. Some isso a humanos cada vez
mais descrentes na potência divina e mais crentes em seus próprios poderes? Os
arcanos estão virando obsoletos. São os únicos anjos que podem andar pela Terra
sem interferir na balança, mas seus serviços estão muito abaixo do esperado.
– Está dizendo que
desfez minha proteção por ordem divina?
– Mais do que isso. Com
a popularidade dos arcanos tão em baixa, eles estão deixando de ser
necessários. Os mais espertos, fugiram e se esconderam entres os homens. Outros
buscaram abrigo com outras divindades para oferecer serviços que nenhum outro
deus oferece. Mas os fiéis aos protegidos como eu, estão sendo desligados do
serviço no pior sentido da expressão. Eu fui uma delas, contudo me foi feita
uma oferta: se eu ajudasse a matar você, eu não só seria poupada, mas como
subiria de nível para querubim. Seria mais poderosa e poderia agir livremente
na Terra.
– Mas você continua
arcana.
– E você continua vivo.
– disse puxando uma adaga prateada.
– Helena, não! – mas a
arcana já havia partido pra cima de Mazda.
Ele pegou ela pelo
braço e a jogou contra a parede, em seguida disparou seu poder contra ela que
atravessou o concreto indo para outra sala.
– Mazda, não! – mas o
Arquiteto Humano já havia também puxado seu sabre de luz laranja e partido pra
cima da anja.
Aproximei o espelho da
sala para ver melhor a luta. Mazda desceu o sabre na direção de Helena que
defendeu e o chutou pro lado. Ele foi de novo, mas a arcana já havia levantado
travando com ele uma emocionante luta de espadas. Emocionante não pela luta em
si, mas pelo desespero de Cassandra vendo seu anjo da guarda e seu namorado
duelando mortalmente.
– Desde que você veio,
só aconteceu desgraças. – disse quando as lâminas disputavam forças em um x.
– Nisso, devo
concordar. – disse olhando pra Jean impassível.
– Mesmo? Pois eu
protegi sua escolhida mais vezes que você. Se não fosse por mim, ela estaria
morta agora.
– Seus acertos não
compensam seus erros. Você a pôs em perigo mais vezes do que toda a vida dela.
– E onde estava você
quando ela estava em todo esse perigo?
Enquanto os dois
discutiam, não percebia o que acontecia com Cassandra. A ruivinha parecia
entrar em choque ao ver aqueles dois se digladiando sem poder parar a luta e
sem saber como separá-los sem machucar nenhum dos dois. Seria mais profícuo ela
optar pela arcana que acompanhou e a protegeu a vida toda e não aquela minha
metade deturpada que chegou outro dia. No entanto algo inesperado aconteceu. Os
cabelos cobre de Cassandra tomaram um tom vermelho-sangue e seus olhos
acinzentados ficaram frios como a lâmina da adaga de Helena.
Para aquilo ficar mais
insólito ainda, ela retirou uma carta com o diabo na frente e invocou o
dito-cujo. O ser vermelho com direito a calda e tridente, pegou Mazda pelo
pescoço com um e jogou Helena na outra parede com o outro. Mazda ainda tentou
cortar a calda com a espada, mas o diabo
segurou com sua mão de pedra o pulso
dele quebrando-o junto com o sabre. Ao mesmo tempo ele apontava o tridente para
Helena fazendo as três pontas crescerem até atingir a coxa, a barriga e o braço
que segurava a adaga.
– Pegue a Caneta da mão
dele. – Ordenou, quem eu julguei ser qualquer outra pessoa, menos Cassandra.
O diabo meteu a cabeça
de Mazda no chão, fazendo um buraco, segurando-o pelo pescoço. Em seguida pisou
em seu braço bom e lhe arrancou a caneta jogando para sua mestra.
– Cassandra, o que
houve com você? – perguntou Helena presa na parede.
– O que foi que a briga
de vocês rachou novamente minha alma. Mas dessa vez, eu tomei o lugar de
Cassandra. Agora, podem me chamar de Pandora em homenagem a caixa de desgraças
que vocês acabaram de abrir. – ela ria sadicamente. Se Cassandra era um poço de
bondade e ingenuidade, Pandora era o pior oposto.
Tentando escapar,
Helena revelou suas asas destruindo a parede às suas costas, mas com a Caneta
de Mazda, Pandora criou correntes que prendiam sua ex-arcana no chão.
– Imagine um anjo da
guarda de um deus? – repetiu rindo. – Mas talvez eu esteja mais interessada em
seus outros serviços. Sirva a mim e te transformarei em um anjo muito mais
poderoso que um simples querubim. Poderia criar uma classe nova pra você. O que
me diz?
– Eu só sirvo a Cassandra.
– disse sem conseguir se mexer direito.
– E pretendia
abandoná-la?
Então me virei para
onde estaria o armário que guardava o clone de Helena.
– Ela nunca pretendeu
abandonar Cassandra. – disse para Jean.
– Sirva a mim, ou terá
o mesmo destino dele.
– Não me importo em
morrer.
– Não foi o que
pareceu. Mas não é a morte que o espera. – suspirei de desgosto. – Levarei ele
para alguém que sempre almejou ser um deus, mas que agora terá um na coleira.
Sim, deixarei Mazda com seus poderes divinos, embora sua caneta esteja comigo
agora.
– Vai entregá-lo ao
Príncipe da Alvorada? Por quê?
– Para tê-lo em minhas
mãos.
– Você já tem a Caneta.
– Isso não ajudou muito
o nosso querido amiguinho aqui, né? Às vezes aliados, é a melhor arma que se
pode ter. – olhei de soslaio para Jean achando sábia minha escolha de salvá-la,
mesmo que minha intenção fosse somente salvar Joaquina.
– Escolha: ser meu
braço direito ou ser o passarinho do Príncipe?
A anja pensou no que me
pareceu uma eternidade:
– Prefiro qualquer
coisa a servir você.
– Ok. – disse sem
esboçar emoção alguma, nem contente, nem triste, nem de que já esperava, nem de
surpresa. – Quem perde é você.
Então a corrente criou
mais anéis até as mãos do diabo que arrastou Helena. Com a calda ele fazia o
mesmo com Mazda pegando-o pelo pescoço. A mulher então escreveu algo no ar e
fechou a porta que ligava as duas salas. Quando abriu a porta novamente, não
era mais o seu local de trabalho no outro lado, mas um imenso salão de pedras
negras, janelas suntuosas e imensas e decorado por gárgulas que tinham vida
própria. No final do salão alguém sentado em um trono esbranquiçado perguntava:
– Quem é você e como
entrou em meus aposentos?
Antes que Pandora
respondesse, seu servo já havia passado pela porta com os dois reféns e a mesma
já tinha se fechado.
– Pelos animais de
decoração e pela paisagem do lugar, aquele só pode ser uma pessoa. – disse para
Jean quando meu reflexo negro voltou a aparecer. Me virei para fitá-la. – Sei
que salvei sua vida e que deve lealdade a alguém depois que sua generala foi
morta. Mas não posso te pedir para vir comigo.
– Você vai precisar de
minha ajuda. – disse ela com simplicidade.
– Mas a escolha de me
ajudar ou não é sua.
– Eu escolho ajudar.
– Agradeço por isso, –
disse sem conseguir disfarçar o sorriso. – mas não quero uma serva.
– Serei o que você
precisar. – não soube como reagir àquilo.
Me limitei a olhara
para porta aberta fechando-a.
– Tentarei ser o mais
breve, possível.
– E qual o plano?
– Matar um deus e
resgatar uma humana e uma anja.
– Até que é simples.
– Muito. – usei o poder que coloquei no anel ao
sair do mundo-espelho e reabrir o portal para os aposentos do Príncipe da
Alvorada. Usei as sombras para nos cobrir e disfarçar. – Aqui vamos nós.
[1] Gíria para sorte.
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